"Este país não pode dar certo"
"Este país não pode dar certo: aqui prostituta se apaixona, cafetão [chulo] tem ciúme, traficante se vicia e pobre é de direita". A frase, atribuída ao músico brasileiro Tim Maia, é frequentemente lembrada no Brasil.
E o pai do soul carioca morreu em 1998, ainda o país que ele conheceu - contraditório, maluco e desafiador - não se tinha transformado num Bolsonaristão - imbecil, atrasado e cruel - onde paradoxos como aqueles se multiplicaram.
No Bolsonaristão, caro Tim, até o autodenominado "lutador anticorrupção", Sergio Moro, é apanhado a fraudar a democracia: por lhe dar mais jeito eleitoral candidatar-se ao Congresso por São Paulo do que pelo estado onde nasceu e mora, o Paraná, apresentou como prova de que vivia na maior cidade do Brasil a morada de um hotel onde passou meia dúzia de noites e uma consultoria que prestou a uma empresa paulista, mas de forma remota, isto é, a partir da sua casa paranaense.
Em paralelo, a mulher dele, Rosângela Moro, também pré-candidata ao primeiro cargo público que aparecer, fotografou-se, para enganar trouxas, a comer uma turística sanduíche de mortadela no Mercadão de São Paulo, como se morder um pastel de Belém na fábrica deles tornasse alguém lisboeta de uma dentada para a outra.
O Tribunal Eleitoral, claro, não engoliu o esquema do protagonista da Lava Jato, aquela operação política contra a corrupção, e da Vaza Jato, aquela investigação jornalística em que o protagonista da Lava Jato foi desmascarado a corrompê-la.
Caro Tim, no Bolsonaristão até o ministro da Economia Paulo Guedes, ícone do liberalismo brasileiro, implorou aos donos de supermercados que congelassem preços.
Aflito porque a fome, que atinge já 33 milhões de brasileiros, e a inflação, que bate recordes diários, atrapalham os planos de reeleição de Bolsonaro, o notório Chicago Boy travestiu-se de keynesiano e suplicou aos empresários, com o presidente sentado a seu lado, para aumentarem os preços "só em 2023", ou seja, depois do sufrágio.
No Bolsonaristão, caro Tim, até as Forças Armadas decidiram meter o bedelho na questão do voto eletrónico, sistema de eleição que dez em cada dez especialistas garantem ser o mais confiável do mundo, mas com o qual Bolsonaro, na antecâmara de uma derrota, decidiu implicar, reproduzindo os métodos de Trump.
Logo eles, os militares, a quem o Brasil deve uma ditadura de penosos 21 anos, com direito a desaparecimentos, execuções, censura, tortura mas, claro, nenhum vestígio de eleição, nem por voto impresso, nem por voto eletrónico, nem por voto via sinais de fumo.
No Bolsonaristão, caro Tim, até há meses o ministro da Casa Civil era um militar. E o titular da pasta da Cultura, um ator de novelas juvenis inculto. A secretaria de apoio aos negros está sob gestão de um racista. O ministério da Educação passou pelas mãos de um semianalfabeto e de um pastor que queria "universidade para poucos". A Saúde, em plena pandemia, foi conduzida por um (literalmente) paraquedista. E o ex-ministro do Ambiente odiava árvores, flores, passarinhos e tudo o que tivesse um mínimo odor a natureza na mesma proporção com que amava desmatamento, queimadas, garimpo ilegal e invasão pela força de terras indígenas.
Se Tim Maia não tivesse morrido aos 55 anos, hoje teria saudades do tempo em que as prostitutas se apaixonavam.
Jornalista, correspondente em São Paulo