"Este disco não se chama Mariza. Este disco é Mariza"
Há um momento inédito no novo disco de Mariza, que agora chega ao público: uma canção com um poema da sua autoria, a primeira nos 17 anos que leva editando álbuns. "São aquelas coisas que acontecem, que a gente não tem mão", ri-se. O tema chama-se Oração e, nas palavras da intérprete, nasceu assim: "Uma coisa que gosto de fazer quando já tenho os temas do disco escolhidos, para os entender melhor, para os aprender, interiorizar, é escrever num caderno. No meio de um com anotações que mandei para o Tiago Machado ia esse poema que se chamava Só. Ele nunca mais me mandava nada, liguei e ele diz que musicou o poema que ia no meio dos papéis. "Não me digas que foi uma coisa que tu escreveste, eu já estava desconfiado"", relembra. Acabou por cantá-lo em estúdio e ficou.
"Estou contente, mas assustada ao mesmo tempo. Na hora de cantar é tão revelador, não tenho sítio para me esconder. Nos outros, são palavras que não escrevi, são dos outros. Ali, eu sei por que escrevi cada palavra", confessa a intérprete, 44 anos.
Um desses versos é Quero dizer a verdade. "A minha verdade", atalha a intérprete. "Quem ouvir vai sentir à sua maneira, porque temos cada um vidas diferentes. Cada um tem as suas emoções e maneira de viver". Oração já foi cantada em palcos internacionais, "mas é sempre de olhos fechados". O verdadeiro alcance desse poema - Triste e só anda meu coração /Como anda a folha perdida no vento/ /Procuro caminho nesta escuridão/ Procuro a luz no pensamento - fica por dizer. "O que tenho de dizer é que só escrevo quando estou triste".
Por que demorou tanto? "Tem a ver com respeito. Respeito por aquilo que gosto de ler. Fernando Pessoa, Florbela Espanca, António Botto, entre outros". Agora, como ela mesma diz, "a janela abriu-se". Dizem-lhe: "Mariza, já escreveste tanto, tens tanta prosa, porque não fazer um pequeno livro de bolso, mas não sei. Tenho de pensar. Se calhar é deixar passar tempo e eu habituar-me à ideia. "
Apenas Mariza
Este é sétimo registo de Mariza em estúdio, o primeiro homónimo. "Ao princípio ia chamar-se Amor, porque a vida é feita de amor e todos nascemos de um ato de amor, mas depois as pessoas iam achar "esta acha-se a dona da verdade". Ainda pensei Fado Bailado. Não me revia. Este disco é meu. Não se chama Mariza. É Mariza", afirma a artista ao DN, enfatizando o "é".
A história do disco começa com "com 40 temas na gaveta". "Eles vão chegando, às vezes nem estou a fazer disco nenhum. Chega o Jorge [Fernando] e diz: "toma". Ai, que lindo, põe na gaveta. Quando chega uma altura de fazer um disco, vou lá buscar e tenho entre 30 e 40 temas. O difícil disso tudo é escolher".
"Nestes últimos três discos, o Javier Limón esteve muito presente", diz sobre o produtor c com quem trabalhou também nos discos Terra (2008) e Mundo (2015). "Chego com 30 temas e ele diz logo "Cariño, tienes que decidirte". Gosto de todos, mas de repente começo a cantá-los e começo a ver os que têm mais a ver comigo, com a minha vida, em que me revejo mais, os que sinto mais e ficam uns 20. Chega a parte do produtor, escolhes 12. Desta vez consegui 14. Toda a gente contra mim, dizia que um disco não tem 14 temas, mas o meu tem. Recuso-me a tirar mais um tema que seja."
Como um vestido de alta costura
Conta como foi aprender a viver o estúdio de gravação. "Ir para estúdio para mim era muito doloroso. Odiava. Porque, para mim, a verdadeira verdade, se é que esta palavra existe, era em cima do palco". Foi com Jaques Morelenbaum que, conta, se apercebeu "do fascinante que é estar dentro de um estúdio, porque é um laboratório com um coração lá dentro". E hoje é assim que descreve essa experiência: "É como se estivesse a fazer um vestido de alta-costura. Agora bordo aqui, agora bordo ali. E é inacreditável o prazer que isso dá: construir algo à minha medida, para a minha voz. Esse é um processo em que tenho participado cada vez mais. Porque quando sai cá para fora, comercial ou não, é meu."
No estúdio, relata, costuma cantar o mesmo tema três vezes. "É sempre o segundo que fica". Cita o que ouve de Javier Limón: "A primeira, ela está a sentir. A segunda, ela já tem o sentimento e a certeza. A terceira é para deitar fora, porque já está à procura da perfeição." E há takes que são há primeira. "Quebranto foi à primeira, eu e o Pedro Joia". A canção é Jorge Fernando.
E não é por acaso que o nome do músico brasileiro vem à conversa. Jaques Morelenbaum, produtor em Transparente (2005), também está neste disco na canção Semente Viva, letra de Flávio Gil e música de Mário Pacheco. "Quando me chegou este tema, havia ali um lado dramático que era preciso que eu sentisse e eu pensei por que não chamar o meu amigo Jaques com a sonoridade maravilhosa do violoncelo. Fiz-lhe o convite". A voz põe um sotaque do Brasil. "Tou apertado de agenda, agora não". Mas a canção chegou e na volta do correio "já estava feito."
Com Matias Damásio
Mariza, que continua a não se denominar fadista - "Fadista é elogio, não vou estar a auto elogiar-me. Em pequena, quando a pessoa sentia a música dizia-se "Ah, fadista". Se alguém gostar que me chame". E este disco não é só fado. É um encontro de autores. Tiago Machado, Jorge Fernando, Mário Pacheco... mas também Diogo Clemente (música) e Carolina Deslandes (letra) em Por Tanto Amar e Matias Damásio, autor de Quem me Dera, um dos dois singles selecionados deste disco. A outra é o fado Trigueirinha de Jorge Fernando e António Vilar da Costa.
Mariza, 44 anos, explica que quando a ideia nasceu, com o seu manager que é também manager do cantor angolano, achou impossível. "Ele não escreve para ninguém, é cantautor, só se escreveu paras alguém em Angola, eu não sei". Do outro lado, conta a artista, Matias Damásio surpreendia-se com a ideia de Mariza querer um tema da sua autoria. "Quando nos conhecemos percebemos que gostamos um do outro e quando me chega o tema percebo que tem uma leveza poética que não tinha encontrado em temas que tenho cantado... adorei por isso".
A canção de Matias Damásio sai fora do que Mariza descreve como fado. "Adoro cantá-la, mas o Quem Me Dera não é um fado fado. A guitarra portuguesa trouxe a portugalidade da qual tanto gosto e a lusofonia de que faço parte, mas é uma canção, não é fado", afirma. "Eu não gosto muito de arrumar a música assim, porque para mim só existem dois tipos de música, a boa e a má, mas às vezes é preciso ir à prateleira".
Das casas de fado ao Museu
É um longo debate sobre o que é fado ou não. Haverá ainda um fado tradicional? Mariza volta aos tempos de criança quando começou a cantar e era a única. "Ninguém gostava de fado. Já adolescente quando dizia "eu adoro fado", era uma ave rara. "Fado? Ninguém gosta de fado, fado é dos velhos". Hoje temos um Museu do Fado, temos escolas de guitarra portuguesa, temos uma Escola Superior de Guitarra portuguesa em castelo Branco, feita pelo Custódio Castelo. Temos cada vez mais sítios onde se pode ir cantar, dantes eram muito poucos e confinados. Agradeço o facto de nunca terem fechado as portas e terem aguentado aquela época em que as pessoas estavam mais viradas para outros géneros. E sinto que existe cada vez mais gente nova a ouvir fado", explica a artista.
No disco, há uma referência a estes lugares de fado (e à história de Mariza). Canta Fado Errado, ao lado de Maria da Fé, dona do Sr. Vinho, uma casa de fados onde Marisa cantou.
" Há é outra coisa: nós para darmos passos em frente , temos de conhecer a nossa essência ou não poderemos dar passos certos", diz Marisa, explicando o que é o fado tradicional. "Existem mais de 300 melodias tradicionais, que se regem por uma métrica, que têm entre 80, 100 e 120 anos. Que podem ser cantados por todos, só muda o poema. Posso dar-lhe aqui um exemplo", diz, começando a trautear Povo que Lavas no Rio , de Amália, e logo a seguir canta Fernando Maurício. "É o mesmo fado, o Fado Vitória, com poemas diferentes. É isso o fado. O que nós fazemos hoje são fados musicados, a falar de Portugal, de uma modernidade, mas se for aos meus discos todos está lá um fado tradicional. É por isso que digo que não [não morreu esse fado tradicional] quando vou às casas de fado em Alfama, temos fado tradicional. É uma música urbana, move-se e respira ao mesmo tempo que a cidade.
E então voltamos ao poema de Matias Damásio. O artista, autor do êxito Loucos, escreve: Será preciso uma tempestade/ Para perceberes que o meu amor é de verdade/ Te procuro nos outdoors da cidade, nas luzes dos faróis/ Nos meros mortais como nós/ O meu amor é puro é tão grande e resistente como embondeiro/ Por ti eu vou onde nunca iria/ Por ti eu sou o que nunca seria.
"O Matias Damásio tem uma forma muito livre de escrever e utiliza palavras que para mim, que escrevo imenso e leio imensa poesia, era impensável como falar dos outdoors da cidade. Ele é capaz de rimar autocarro com o sapato amarelo do Jobim. Quem vive no meio do fado vive mais espartilhado. Sabe das contagens silábicas, sabe se são decassílabos, quintilhas e quando vai escrever está espartilhado, tem um fórmula e as palavras são mais pesarosas, onde e que cai a sílaba tónica. Esse é o verdadeiro poeta e escritor de fado. Hoje em dia, nesses temas que se fazem, não há tanta preocupação."
Dezassete anos de "experiência"
Passaram 17 anos desde que Fado em Mim, o primeiro disco de Mariza foi editado. "A pessoa é a mesma, mas cresceu. Dezassete anos trazem trazem experiência, não tenho a inocência que tinha no Fado em Mim, vejo as coisas de outra forma". "Se gravasse o disco agora, seria completamente diferente provavelmente", admite a intérprete.. "A começar pela voz, que amadureceu e está mais grave". Conta que se ouviu recentemente a cantar Fado Loucura desse tempo. "Aquela voz já não existe", ri-se. "A voz tem um corpo, uma maturidade, um grão... Cresci. Sou outra cantora".