Estão a aumentar os acumuladores compulsivos de animais
Quando a proposta de resolução do PAN chegou ontem à Assembleia da República, o espanto da maioria dos deputados era geral. Poucos tinham ouvido falar da síndrome de Noé, essa perturbação mental que leva as pessoas a acumular, compulsivamente, animais em casa, mesmo sem terem condições para isso. Aliás, até no seio do PAN - Pessoas-Animais-Natureza o tema só ganhou dimensão para os membros quando o assunto lhes bateu à porta - literalmente.
Cristina Rodrigues lembra-se bem do dia em que o assunto tomou conta da sede do partido, na Rua Almirante Reis, em pleno centro de Lisboa. "Tínhamos uma vizinha, que até costumava passar pela sede do PAN e falar connosco sobre os animais. Sabíamos que tinha alguns gatos, mas nunca imaginámos que a situação fosse como era": mais de cem gatos enclausurados no apartamento de quatro assoalhadas, alguns já cadáveres, todos a conviverem com falta de condições de higiene e salubridade.
"Na verdade nós percebíamos que a senhora tinha alguns problemas, mas qualquer um de nós estava longe de imaginar a dimensão daquele caso. Acumulava em casa todos os gatos que encontrava, na cabeça dela fazia o melhor por eles, pois bastava-lhe gostar dos animais e alimentá-los", lembra Cristina Rodrigues, membro da comissão política nacional do PAN. Naquele dia, a reunião foi interrompida por uma agente de execução que se encarregava da ordem de despejo, pois a detentora dos animais deixara de pagar a renda. Soube-se mais tarde que vivia também sem água e sem luz, ambas cortadas por falta de pagamento.
"Desde então temos recebido imensas denúncias de situações como essas, que acontecem cada vez mais e por todo o país", contou ao DN Cristina Rodrigues, que tem ainda na memória os casos recentes de Câmara de Lobos, na Madeira, em meados de dezembro (cerca de 50 cães retirados de uma casa onde moravam três idosas), ou de Santo Tirso, onde o Departamento de Ação Penal do Porto moveu um processo-crime aos proprietários de dois abrigos de animais, com centenas de cães.
Porém, a maioria destes casos está longe de ser exclusivo das autoridades judiciais, tendo associado um problema de saúde pública - por um lado - e "a necessidade de um acompanhamento psicológico e social destas pessoas", lembra Cristina Rodrigues, para justificar a proposta de resolução do PAN: criar um grupo de trabalho com vista a elaborar um plano para prevenir e lidar com os casos da síndrome de Noé, mais conhecida por acumulação (compulsiva) de animais. A dirigente do PAN sublinha a importância do acompanhamento, já que "normalmente estas pessoas voltam ao mesmo, mais cedo ou mais tarde".
Compreender a síndrome de Noé
Considerada uma variante da síndrome de Diógenes, "em que uma pessoa se sente compelida a acumular em casa ou num outro local de sua pertença um número desmesurado de animais domésticos, sem lhes proporcionar os cuidados necessários", a síndrome de Noé é uma perturbação que tem por base diversos fatores de predisposição, tais como episódios de stress psicossocial e de solidão, evidenciando muitas vezes uma sintomatologia de perturbação obsessiva compulsiva, de psicose ou quadro depressivo.
"As condições psicológicas destas pessoas, que se encontram em sofrimento, podem inclusivamente representar o substrato orgânico para esta doença, têm de ser consideradas e prevenidas", sustenta o PAN na recomendação que ontem foi acolhida no Parlamento.
Nos Estados Unidos - onde o tema é abordado há já bastante tempo - "têm sido identificados entre 700 e 2000 novos casos de acumulação de animais por ano. Na Europa começam a ser divulgados os dados".
Na Casa dos Animais de Lisboa (centro de recolha oficial) os números não param de crescer, sobretudo a partir de 2015. Marta Videira é diretora técnica desde 2013, por isso notou sobremaneira essa diferença vincada nos últimos dois anos. Tem ainda bem presente o caso da Almirante Reis, onde, no total, a Casa dos Animais acabou por recolher 180 gatos, entre janeiro e junho, já depois do internamento compulsivo da detentora. A capacidade da Casa dos Animais é de 250.
"Tem sido uma situação recorrente para nós, o que nos faz viver numa constante lotação", disse ao DN, depois de nesta quarta-feira os serviços terem sido chamados a mais um caso similar, no Restelo. Desta vez os vizinhos alertaram para o abandono de vários cães, cujo dono sumiu, sem deixar rasto. Mas Marta Videira aponta o que já foi identificado como um padrão: "São pessoas sozinhas, com alguma idade, que vivem em casas muito pequenos da cidade de Lisboa, de tipologia T0 ou T1. O caso da Almirante Reis era uma exceção." Mas esse é um padrão que se altera fora das grandes cidades, onde o problema começa também a despontar.
Perfil do acumulador compulsivo
O psiquiatra Cláudio Laureano - que dirige o Serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar de Leiria - também nota um aumento dos casos, mas lembra que os estudos disponíveis sobre o síndrome são ainda escassos, o que dificulta a compreensão, no seio da sociedade civil.
"Mas mesmo os poucos estudos disponíveis apontam para uma prevalência entre 2% e 4% da população, o que é muito e tem de ser olhado com atenção." O especialista em saúde mental traça um perfil de pessoas com mais de 70 anos, muitas vezes a viver isoladas, sem família ou vizinhos que se apercebam da necessidade de ajuda. "É inegável que precisam de acompanhamento multidisciplinar, com especial incidência da psicoterapia, mas também com recurso a psicofármacos, como normalmente acontece com outras perturbações obsessivo-compulsivas", acrescenta Cláudio Laureano, que insiste na necessidade de um "acompanhamento permanente, até à reinserção, pelo que a família - quando existe -, os amigos e os vizinhos têm um papel fundamental".
O PAN insiste também nessa tónica: é preciso acompanhar as pessoas, olhar para cada um desses casos de saúde mental e para a generalidade da saúde pública.