O escritor Amin Maalouf tornou-se um dos imortais da Academia Francesa em 2011. Confessa que essa honra teve um preço: "Deu--me mais certeza sobre a minha mortalidade." A seguir a estas palavras ri-se, situação que repete várias vezes ao longo da entrevista. A exceção é nos momentos em que refere o descalabro em que se encontram as civilizações ocidentais e orientais ou se fala de fanatismo e do desentendimento da humanidade sobre um mundo melhor. Aí, Maalouf, que usou o romance histórico para recuperar épocas como a do profeta Mani, o protagonista de Os Jardins da Luz (1991), agora reeditado em Portugal, não sorri nem dá uma gargalhada como nos momentos em que a literatura ou os acontecimentos no mundo o incomodam menos. Mas nunca deixa de ser simpático, ou de evocar o seu gosto por Portugal, onde tem um filho a viver e já foi honoris causa. "Em Évora", acrescenta imediatamente quando se toca no assunto..O escritor nascido no Líbano em 1949 sempre acreditou que o futuro ia ser melhor e tudo fez para que isso acontecesse, tornando-se conhecido como "mediador" entre as culturas do Ocidente e do Oriente. Também neste caso não há razões para sorrir: "Infelizmente, não aconteceu o que desejava. As questões de identidade não estão tão esbatidas como gostaria e o fanatismo está bem mais presente nesta época em que vivemos do que imaginaria há algumas décadas.".Quando se lhe pergunta se faria tudo da mesma maneira se recomeçasse a vida literária, tendo em conta que o romance histórico de inspiração oriental foi a chave do seu sucesso, Maalouf responde com poucas palavras: "O sucesso não é o mais importante, prefiro gostar do que fiz e ficar satisfeito com a minha obra. Essa é a condição do escritor, que deve também ter a capacidade de encarnar os valores que defende.".Este é um livro sobre uma nova religião, tema perigoso no momento em que se vive. Concorda?.O personagem de que falo, Mani, tinha uma utopia sobre a qual nem precisamos de ponderar muito para saber que é completamente impossível de imaginar existir neste mundo atual. Mani quis fundar uma religião no século III, que não era exclusiva, ou seja, que todos podiam partilhar e continuar a respeitar as outras religiões da época: o cristianismo, o zoroastrismo e o budismo. Era original, mesmo que muito estranha, pois parte de uma visão muito generosa da religião..Era impossível ver surgir um Mani hoje em dia?.Creio que já naquela época era difícil e num mundo como o nosso parece-me ainda mais difícil. No entanto, mesmo lançar uma nova ideologia naquele tempo só se poderia conceber através de uma religião. Hoje, em tese, pode criar-se uma teoria filosófica sem ter de lhe dar uma forma religiosa. O que difere em Mani era a defesa de uma ideologia de partilha, que era aberta, de tolerância e não exclusiva. Pelo contrário, queria que fosse inclusiva mais do que para dividir..Essa palavra tolerância também não é boa de se pronunciar atualmente?.A palavra tolerância é um pouco ambígua. Lembro-me de há uns anos lançar um livro em Madrid e a pessoa que amavelmente o apresentou foi Saramago. Alguém da audiência perguntou se eu era a favor da tolerância, ao que respondi que o contrário da tolerância não é a intolerância. A opinião segundo a qual se deve simplesmente tolerar os outros é uma ideia limitativa, penso que estamos num mundo onde há pessoas que têm identidades e culturas diferentes e é necessário podermos conviver e não aceitar que os mais fortes só tolerem os mais fracos..Não é bem o que se observa!.A tolerância é um conceito de uma época precisa, a dos séculos XVI e XVII, quando nos Países Baixos se desenvolvia a ideia de que as pessoas numa mesma sociedade podiam ter religiões diferentes. Era uma novidade para a época poder viver desse modo. Uma ideia muito bela que hoje não tem lugar, pois estamos numa época em que mesmo tolerar minorias é impensável. São perseguidas em permanência, como é o caso dos cristãos no Paquistão, ou sociedades que não possuem qualquer tolerância e onde desafiar as maiorias é um perigo. Por isso digo, a tolerância não é suficiente..Pode dizer-se que os cristãos são hoje bastantes perseguidos?.Depende dos países. Em certos países há minorias cristãs perseguidas, noutros existem outras minorias nessa situação. A tolerância não vai recuar, antes irá crescer..No século XX a religião foi bastante esquecida, mas neste século é o contrário. A que se deve?.O século XX não foi um século religioso, até diria que as duas grandes tiranias, o nazismo e o estalinismo, eram violentamente antirreligiosas. Portanto, creio que foi o século XX que criou um sentimento de identidade através da religião e das derivas dessas duas tiranias. Em muitos países a religião parecia uma saída e um reencontro com a inocência. É o caso das religiões que são utilizadas para as pessoas se defenderem da violência, mas a pergunta que se deve fazer em países da Europa Oriental, como a Polónia e outros, é se a religião apareceu como uma proteção contra a ditadura e o sistema. Houve um período em que a religião se assemelhava a uma forma de resistência contra o poder, tal como recentemente parecia sê-lo contra as tiranias na Síria ou no Egito. Esses movimentos populares continham uma componente religiosa que, a dado momento, apresentaram-se como uma oposição à modernização e à verdadeira democracia..Não se pode dizer que o Daesh seja uma proteção desse género?.Não, é outra coisa. É um movimento religioso e político que se aproveitou da situação na Síria. Quando falo de proteção é do catolicismo na Polónia e nunca de movimentos islâmicos no Iraque, Líbia e países assim..Num ensaio diz que as civilizações ocidentais e muçulmanas estão esgotadas. Mantém a posição?.Sim, mesmo que não do mesmo modo. Creio que o mundo árabe está num estado de desintegração muito grande e não numa época de conquista como se diz, até mesmo num período em que se está a desfazer a nível de política moral e social. O ocidente tem outros problemas, porque se confronta com a responsabilidade por muitas questões mundiais mas não tem meios para a assumir. Na Europa, por exemplo, temos agora o sentimento de ter resolvido os problemas [dos refugiados ] do Mediterrâneo, mas isso não aconteceu. O Ocidente não está a desfazer-se, mas em desespero recusa-se a exercer o seu papel global. É um tempo muito difícil e não sei como se vai superá-lo..O problema não é mais da própria União Europeia?.Não, é o de a Europa não se ter constituído como potência comparável aos Estados Unidos e ter escolhido posições políticas hesitantes. Ou seja, não tem um papel de grande potência no mundo e está a sofrer as consequências do que se passa sem querer participar no conserto do problema..Refere-se também aos atentados na França e na Bélgica?.Não há só uma doença, são várias. Há um coisa nova que é o afundamento das nações árabes e as suas consequências, mas existem outras razões para explicar a crise atual da Europa..A sua carreira tornou-o um mediador entre o Ocidente e o Oriente. Acredita que esse seu papel ainda é viável?.Creio que é cada vez mais difícil porque é preciso evitar o pior e o que está a acontecer: uma subida da violência e da insegurança. O mundo vai numa direção que eu jamais esperava e, mais uma vez, a crise do mundo árabe e a situação global não deixam esperança para se manterem os valores..Na sua obra o Mediterrâneo é um cenário bom, mas agora é apenas o de fuga dos povos de África e pouco mais. Como vê a mudança?.Infelizmente isso não é mentira. Creio que todo o imaginário sobre o Mediterrâneo e a ligação ao Oriente estão alterados pela realidade - que mais uma vez não é a que eu esperava. Acreditava num mundo de conciliação, de liberdade, de igualdade e fraternidade como dizia a Revolução Francesa e, em vez disso, a realidade que triunfou é completamente diferente..Tem medo de viver em França?.No plano pessoal não tenho medo, mas como as coisas estão mal em todo o mundo dificilmente existirá um período de tranquilidade e de estabilidade brevemente. É uma época muito tumultuada ..No seu livro O Périplo de Baldassare está sempre presente a questão do fanatismo. Se o escrevesse agora faria diferente?.Não, porque nada mudou a nível das ideias, até constato que o mundo está a seguir por essa via. As minhas convicções não mudaram e continuo a desconfiar da deriva das religiões. O que escrevi nesse romance e noutros livros obriga-me a manter a mesma direção e a afirmar que em relação ao século III nada mudou..A sua temática é, então, mais atual do que nunca....Infelizmente sim, pois queria que as questões de identidade estivessem mais esbatidas e o fanatismo não fosse uma situação do presente. Mas é nesta época que vivemos..Este romance que agora é reeditado em língua portuguesa data de 1991. Estranhou, ou é natural publicar uma obra com tantos anos?.Creio que este livro tem sempre uma atualidade própria e, só porque se trata do século III, não é uma questão a ser esquecida. Tem uma grande atualidade, mesmo que vá ser lido com um olhar diferente do do tempo em que foi publicado..O protagonista, o profeta Mani, é uma figura polémica. Que deu origem à palavra maniqueísmo, pelo qual até é mais conhecido.......Exatamente, mesmo que a palavra maniqueísmo seja utilizada de uma forma errada na maioria das vezes porque, enquanto religião, nada tem que ver com a noção com que a utilizamos hoje. Que é simplista no que respeita a essa religião e ignora o que é verdadeiramente o pensamento de Mani..Pode dizer-se que escreveu sobre Mani de uma forma simpática. Ele era mesmo assim?.[risos] Não sei bem, pois passaram muitos séculos sobre o tempo em que viveu. O que posso dizer é que quando gostamos de uma personagem podemos colocá-la mais simpática algumas vezes. Se a voltássemos a ter na nossa vida quotidiana talvez não fosse tão agradável como surge no livro..Este género da biografia romanceada é o seu estilo preferido?.Pratico-a muitas vezes porque me permite - e ao leitor - descobrir a época, mas não posso afirmar que seja o meu género preferido. Utilizei-o porque me interessava, tal como no meu romance Leão - O Africano, uma personagem tão pouco conhecida como é o caso de Mani. Não considero que seja uma biografia romanceada, antes uma mistura de ficção e história sobre personagens que têm um valor simbólico..Foi com Leão - O Africano que encontrou a sua voz literária?.Efetivamente. O mais curioso é que partilhava um pouco a história dele, a de um viajante que queria deixar o seu país e foi para a Itália, onde havia outra língua para falar. Eu também deixei o meu país e de escrever na minha língua maternal, pelo que dei um pouco de mim a essa personagem..Escreve em francês ou em árabe?.Em francês..Se pudesse encontrar uma personagem atual e tão inspiradora como Mani no passado escreveria outro romance do género?.Não é difícil encontrar personagens. Se o fizesse atualmente e quisesse escolher uma época e uma personagem interessante para estudar como fiz com Mani seria alguém como Mandela..Escreveu sobre o padre António Vieira. Há mais figuras portuguesas que o interessam?.Sim. Quando tratei dele fiquei muito interessado e achei que até iria escrever mais sobre a sua vida..Aquela frase batida de a realidade ser mais inventiva do que a realidade diz-lhe alguma coisa?.Antes a imaginação era uma matéria científica. Hoje, realmente, não tem a velocidade da realidade. Mas se quisermos imaginar o mundo dentro de 50 anos ainda será mais difícil. Infelizmente, a realidade no plano moral tem uma evolução muito mais lenta e às vezes até em sentido contrário..Acredita que é mais fácil encontrar a verdade histórica como romancista do que como historiador?.São verdades diferentes, antes de mais. Para se encontrar a verdade histórica há modos de busca muito precisos. O romance não exige uma realidade histórica nem qualquer outra..O seu passado inspira-o para novos livros?....Talvez... Digo isto porque estou a trabalhar num tema que tem um pouco de inspiração no meu percurso... Mas ainda é muito cedo para o revelar..A guerra do Líbano, que tanto o afetou, interessa-o como tema?.Só falo dela de maneira indireta, nunca farei um livro que seja a história da guerra do Líbano ou um romance sobre esse tema..Leia mais pormenores na edição impressa ou no e-paper do DN