"Estamos a viver um dos momentos mais graves da história recente da Igreja"
O ruído dos peregrinos no Santuário ecoa na sala onde falamos. Os sinos da basílica anunciam as horas certas. E é hora de almoço no refeitório da Casa de Nossa Senhora das Dores. É naquela casa que o padre José Nuno Ferreira da Silva, ou o padre Zé Nuno, para alguns, tem agora o seu lugar. Um espaço num primeiro andar com vista para o Santuário, para os peregrinos. É ali que passa muito tempo. É ali que tem os seus livros, as suas fotos - uma com o amigo especial Cristophe, uma pessoa com deficiência que conheceu na comunidade da Arca, por onde passou durante um ano sabático, com o Papa Francisco, cuja visita pelo centenário das Aparições em Fátima ajudou a preparar. É ali que escreve, gosta de brincar com as palavras, diz. A tese de doutoramento sobre a "Morte e o Morrer, Lugar e Deslugar", já está publicada em livro.
Tem mais um, de poesia e ilustrado por aguarelas de um amigo, O Outro: Itinerários de Hospitalidade. E é ao outro, à pessoa, à dimensão da vida humana, que tem dedicado a sua vida de sacerdote. José Nuno Ferreira da Silva tem 53 anos. Foi escuteiro, ainda é, desde os 5 anos. Foi capelão 18 anos. E não receia dizer que foi num hospital, onde a morte acontece massivamente, onde o sofrimento é cada vez mais medicalizado, que foi mais feliz. Diz que esperava levar Deus ao hospital, mas Deus já lá estava por todo o lado.
A experiência mudou-o como pessoa e como padre. Há dois anos mudou-se para Fátima, é responsável pelo Departamento de Pastoral da Mensagem de Fátima, mas confessa que antes não tinha uma relação especial com esta mensagem. "Tinha mais ligação com a mensagem de Nossa Senhora de Lourdes, onde anos a fio fui com estudantes de Medicina e celebrei tantas vezes", reconhece. Agora tem outra perceção. Fátima é uma mensagem atual e quem estiver em sofrimento pelo sentido da vida e ali for encontrará apoio, afirma. Dias depois de o "seu" hospital, o São João, andar envolto em polémica, e na semana em que o Papa Francisco tem estado sob fogo, fala de si, da vida, da morte, do momento grave que a Igreja está a passar, um dos piores da sua história recente.
Nasceu a 8 de novembro de 1964. A sua mãe falou-lhe sobre o que viveu nesse dia?
Falou. E sei a história por causa de uma particularidade. Nada indicava que eu fosse nascer, a parteira tinha estado lá em casa, mas achou que ainda não era a altura. A minha mãe ficou sozinha, a situação precipitou-se e eu nasci, mesmo sem parteira, e em casa, ao contrário dos meus irmãos, um nasceu na maternidade e o outro no Hospital de São João. O meu pai estava para o futebol, porque era um domingo à tarde, e eu digo a brincar que não gosto de futebol porque nunca lhe perdoei.
Lembra-se do dia em que decidiu ser padre?
Não me lembro do dia em que decidi ser padre, lembro-me de tomar consciência de mim a querer ser padre e a dizê-lo. E isso é o que explica que tenha ido para o seminário tão criança ainda, aos 12 anos, não tinha feito os 13, mas nunca quis ser outra coisa na minha vida senão padre.
Nunca teve dúvidas?
Tive momentos agudos de discernimento. A única real questão que surgiu em determinado momento foi a do confronto entre a consciência da minha indignidade e a sublime dignidade do ministério que me ia ser confiado. Este conflito interior foi o único problema sério e o único momento crítico.
Mas alguma vez pensou em abandonar o sacerdócio?
A questão nunca foi colocada nesses termos. Foi um processo lento e longo mas nunca no sentido de abandonar. Pelo contrário, este momento de conflito interior foi fundamental para a minha decisão de ser padre. E por uma razão muito simples: foi o momento que me fez caminhar interiormente até à convicção profunda de que Deus me ama assim. E isso tornou possível a decisão e o enfrentar com confiança o futuro.
A decisão foi bem aceite pela família?
Sim. Sempre. Tenho dois irmãos. Um mais velho e um mais novo, cada um seguiu a sua vida. Estão casados com as mulheres com quem se casaram, tenho seis sobrinhos e já um sobrinho-neto. Em casa, os nossos pais educaram-nos na Igreja, mas só eu é que quis ir para o seminário.
Há dois anos mudou-se para Fátima, para novas funções, mas ainda vai a Gondomar?
Sim, com muita frequência. Inclusive vou cortar o cabelo ao meu barbeiro de sempre, que é um colega de escola. É o modo que tenho de me pôr a par do que se passa com a minha geração.
Esteve 18 anos como capelão no Hospital de São João, mas fez um ano sabático que o levou a outros lugares do mundo. Sentiu necessidade de fazer uma paragem?
Foi em 2011-2012. Senti essa necessidade na sequência de um momento particularmente difícil da minha vida. Precisei de recuperar e de aprofundar a minha relação com Aquele que é a razão de ser da minha vida. E interrompi a minha missão. Mas foi um ano de luz, que me levou a alguns lugares especiais. Estive um mês no Mosteiro de Bose, nos Alpes, em Itália. Uma comunidade monástica, mista, internacional e ecuménica, com membros das várias igrejas cristãs. Aqui fiz um aprofundamento muito grande em relação à centralidade da palavra de Deus. Depois, estive dois meses e meio em Jerusalém, onde vivi a Páscoa de 2012. Foi uma altíssima experiência de fé e de vivência etimológica da Páscoa. Estive onde tudo aconteceu, na Basílica do Santo Sepulcro, fiz a Procissão de Ramos a entrar na cidade de Jerusalém. Por fim, vivi uns meses na comunidade Arca, em França, onde tive uma experiência completamente nova de mim mesmo conduzido por duas pessoas, por Jean Vanier, o fundador da comunidade em 1964, e por uma das pessoas com deficiência que ali vive, o meu amigo Cristophe, de quem cuidei. Levado pela mão dele, e depois muito iluminado pelos diálogos com Jean Vanier, fiz um processo de redescoberta de mim mesmo, que de algum modo me tornou outro e me levou a uma experiência da minha realidade interior que nunca até aí tinha acontecido. Estou muito grato.
Foi um momento marcante...
Não só foi um momento marcante como decisivo para o meu futuro e para tudo o que aconteceu na minha vida a partir daí. Na Arca aprendi que as pessoas com deficiência mental são verdadeiros mestres de humanidade e excluí-los é cavar um abismo entre o homem e a sua verdade mais radical.
Essa perceção tornou-o uma pessoa diferente?
Tornou. Mas já a experiência no hospital me tinha transformado numa pessoa diferente. No dia em que fiz dez anos como capelão fui visitar D. Armindo, já estava doente, mas foi ele que me nomeou. Fui agradecer-lhe, porque aquela nomeação tinha sido quase como um momento de reordenação. O hospital conduziu-me para uma consciência do ministério, da missão dos padres na Igreja e na sociedade junto daqueles que para Deus são os mais queridos - os pobres e os que sofrem. O hospital fez de mim um outro padre.
Foi nomeado capelão quando tinha 33 anos. Teve medo dessa missão?
Claro. Mas apaixonei-me ao terceiro dia.
Como é que lidou com a situação?
Não lidei. A situação é que me lidou a mim. Apaixonei-me logo de início e esta paixão nunca diminuiu. Pelo contrário, tornou-se mais consistente. O fogo da paixão passou, mas o amor não.
Diz que foi um dos lugares onde foi mais feliz. Porquê?
Porque ali o mistério de Deus e o mistério do homem entrançam-se de um modo muito singular e muito autêntico. Foi uma experiência de verdade, de descoberta dos dinamismos do mundo e dos dinamismos sociais e culturais. Os hospitais são lugares cheiíssimos de sinais de Deus. Procurar esses sinais, percorrer o percurso que eles inscrevem na história foi apaixonante. Entrei lá a pensar que ia levar Deus ao hospital e fiquei abismado quando percebi que o hospital estava cheio de Deus.
Fala do Hospital de São João. Tem acompanhado a polémica a propósito das obras na unidade de oncologia pediátrica?
Estou fora do hospital há dois anos mas posso dizer uma coisa. A unidade de pediatria oncológica é o epicentro do sofrimento hospitalar. Não há volta a dar. Não compreender isto de uma maneira consequente em termos de investimento é de um atavismo maldoso. Se há guerras de interesses e de disputas políticas? Eventualmente há, mas não sei. Sei outra coisa: o facto de haver uma unidade de pediatria oncológica naquele hospital e do outro lado da rua haver a unidade do IPO foi sempre uma questão muito debatida. Mas posso dizer também que quando a questão era colocada os pais das crianças não queriam passar a rua, preferiam ficar ali, atestavam a qualidade científica e humana dos profissionais, atestavam o amor profissional com que os seus filhos eram cuidados e com que eles próprios eram amparados. Eu apenas me coloco na perspetiva das crianças e dos pais.
O capelão Frei Fernando Ventura, numa carta aberta ao ministro das Finanças quando soube que as obras no São João iam ser mais uma vez adiadas, disse mesmo: "São uns canalhas, quem quer que seja que se atreva a brincar com crianças com cancro." Isto é intervenção política?
É impossível ter Jesus Cristo para apresentar e o Evangelho para anunciar e não ter intervenção política. É impossível. Se calhar até foi possível que não se fizesse assim em muitos contextos, se calhar até muita gente preferia que fosse assim, mas é impossível. Jesus Cristo e o Evangelho exigem-nos intervenção em questões que não têm apenas que ver com a moral da vida, a moral sexual. Há uma sociedade, há questões sociais, há interrogações sobre a vida em sociedade, e aquelas que vêm dos hospitais são imensas e graves. É impossível não falar. É impossível não dizer. A Igreja não tem apenas uma moral pessoal, a Igreja é sujeito de uma moral social. Não se pode parar nem esperar que se esteja calado em situações de gravidade. As situações têm de se transformar em denúncia. A dimensão profética da presença dos cristãos do mundo não pode ser sacrificada a interesses de conveniência.
Isso remete-nos para a semana que o Papa Francisco tem vivido. A Igreja está debaixo de fogo. Tudo isto tem que ver com a questão da pedofilia ou com interesses dentro da própria Igreja, a corrente mais conservadora contra a progressista?
É infinitamente grave o que aconteceu. Não é grave vir a público. É grave ter acontecido, e da maneira que aconteceu. Não são só os abusos, é tudo o resto, a cultura eclesiástica. É mesmo trágico. Estamos a viver um dos momentos mais graves da história recente da Igreja. O Papa fez bem em colocar o ênfase na penitência, porque é um processo penitencial que se exige da nossa parte. Este processo, por muitas consequências que possa vir a ter, e algumas já estão a manifestar-se, configura um momento de redefinição da própria imagem da Igreja.
Como é que a Igreja se pode redefinir. A sua imagem foi afetada...
Claro. Isto afeta a consciência que os próprios cristãos têm da Igreja e a vivência que fazem em Igreja. Mais concretamente, afeta a perceção que os cristãos têm da Igreja num aspeto fundamental da sua vida e que é o estatuto da hierarquia, que nunca mais será o mesmo.
Haverá volta a dar?
Já está a acontecer. Os cristãos não desistem de ser Igreja porque os seus padres e bispos não souberam estar à altura deste drama. Quem estiver mais atento ao que se está a passar nos países mais assolados por esta situação, como a Irlanda, os EUA e o Chile, percebe que já há uma nova Igreja, uma nova consciência a fermentar. Aquilo que o Concílio do Vaticano II propôs há 50 anos sobre o sacerdócio comum dos fiéis e que tão pouco andou está agora a receber um intenso impulso positivo. A crise da hierarquia acaba por ser o momento para uma das instituições fundamentais do Concílio do Vaticano II crescer e progredir. Os leigos são Igreja. Amaram melhor a Igreja do que os seus pastores.
A Igreja vai ter de aprender a estar de outra forma?
Vai. O Papa Francisco já está a fazer isso. O grande pronunciamento do Papa sobre esta questão foi a carta que escreveu e que dirigiu ao povo de Deus, não a dirigiu aos bispos. E disse: esta questão é uma questão de Igreja e não dos bispos ou dos padres. E este será um momento que deve pautar-se pela penitência, mas a Igreja não foi abandonada pelo Espírito Santo. Houve muita traição, mentira, mas este é o momento em que o Espírito Santo está a atuar em relação ao passado, a transformar o mal do passado numa oportunidade de bem no presente e no futuro.
Daí os ataques a Francisco, que pediu dez vezes perdão na missa na Irlanda.
Mas tudo começa no perdão. O perdão é a bioquímica da história. É o perdão que catalisa, que une, que cria laços. É o perdão que supera. O perdão é a única possibilidade que temos de sanar este momento da história da Igreja e da humanidade. A sabedoria popular costuma dizer: "Perdoo, mas não esqueço." Mas, de facto, o perdoar não supõe o esquecimento, supõe a integração das feridas, que muitas vezes não passa por curá-las, mas por cuidá-las. Seria insensato a Igreja esquecer o que aconteceu. A atitude e o processo penitencial é mais: "Não esqueçam, mas perdoem." Há que acolher tudo o que de bem pode resultar deste mal imenso.
O povo de Deus, como diz o Papa, pode perdoar, mas não pode esquecer...
Em primeiro lugar não podem esquecer, depois devem pedir perdão. Quem pecou, quem esteve envolvido neste processo, como agressor ou ocultador, deve pedir perdão e não deve esquecer, tal como aqueles que foram ofendidos, a quem se deve pedir perdão. Pedir perdão como o Papa fez na Irlanda. Isto é fundamental perceber. O povo de Deus não pode esquecer o que aconteceu na Igreja, mas pode perdoar...
O futuro de Francisco será mais difícil a partir daqui. Poderá levar a uma rutura na Igreja?
Não creio. E os próximos anos do Papa não vão ser difíceis, o seu pontificado é difícil desde o princípio. Estamos num momento crítico e agudo na vida da Igreja. A instrumentalização que está a ser feita da questão da pedofilia para travar outra guerra coloca novas condicionantes nesta crise, mas creio que não chegará ao momento da rutura. O Papa tem uma paixão e têm-na manifestado em muitas circunstâncias. E essa paixão é o que diz o Evangelho de São João: "Não perdi nenhum daqueles que me deste", disse Jesus ao Pai. A fixação que ele tem pelas periferias, a vontade que tem de inserir toda a gente, de respeitar toda a gente e de não julgar, penso que vai conseguir que se passe esta página sem comprometer com carácter definitivo a unidade da Igreja.
Voltando a si. Depois de estar no hospital, doutorou-se em Bioética. O que o levou a escolher esse caminho?
Quando cheguei ao hospital, no dia 7 de outubro de 1998, senti-me como se estivesse a ver navios. Eu nunca quis ser um doutorado. Costumo dizer que sou um doutor acidental, porque fui estudar Bioética porque estava num hospital e sem capacidade de ser interlocutor daquela realidade. O hospital é um sítio muito especial e eu precisava de formação, temo que na Igreja ainda não se tenha percebido a importância de que se revestem os padres que são capelães hospitalares. Têm mesmo de ser formados para a especificidade deste ofício.
Porquê?
Porque a questão da medicalização da vida transforma os hospitais em catedrais. Não apenas no sentido da catedral do sofrimento, mas no sentido da catedral da vida. A vida forja-se no hospital, é ali que toda a gente vai e é o homem que está ali em causa. Neste momento, as ciências médicas são a grande fonte de interrogação sobre o homem, estão sempre a abrir novas possibilidades e a afastar o limite do possível. Ser interlocutor deste meio exige formação e o papel que um capelão pode ter no hospital é muito importante, pode ouvir de outra maneira. A Igreja não me formou para este papel, e eu tive de procurar formação para poder ajudar as pessoas e poder entrar nos debates e interrogações do domínio da ética e da espiritualidade que se colocavam. A minha intenção era fazer apenas a parte letiva de um mestrado em Bioética Teológica, que tinha aberto na Universidade Católica, no Porto, mas depois entusiasmei-me e apostei no doutoramento e ainda sei qual foi a primeira tese que idealizei...
Qual foi...
Na altura falava-se da ovelha Dolly e pensei numa tese: "Agnus Dei ou ovelha Dolly." Seria sobre a insuficiência simbólica da clonagem como método da reprodução humana. Nem a comecei, só andou aqui na cabeça. Em termos hospitalares, a morte que ali acontecia massivamente, cinco a seis pessoas por dia, sem ser reconhecida, acabou por me orientar.
Daí a tese "A Morte e o Morrer entre o Deslugar e o Lugar". O que significa esse deslugar?
Gosto de brincar com as palavras. É um conceito que inventei.
Mas o que é para si um deslugar?
O primeiro mandamento da presença da Igreja no mundo é saber interpretar esse mundo. Isso exige estudo e recurso às ciências humanas, senão não se consegue fazê-lo. Deus encarnou neste mundo, quanto mais eu conhecer a sua realidade tanto mais sou capaz de significar a encarnação de Deus em Jesus Cristo. A minha preocupação foi estudar aquele mundo, para onde tinha sido enviado e onde tinha de viver.
Como é que surgiu o conceito?
Fui lendo e o conceito foi-se desenhando progressivamente. Peguei nas características de não lugar que Marc Augé propõe num dos seus livros, em que o não lugar é um espaço onde se realiza a vida das pessoas, mas que não é um espaço histórico, relacional nem identitário.
Um espaço onde a pessoa está, mas sem qualquer relação?
A pessoa está ali, mas esvaída de si mesmo. Depois fui buscar outros conceitos, a Giddens e a Foucault, consegui reunir três e com eles consegui construir o conceito de deslugar, que usei para explicar o que é então o hospital em relação ao morrer.
E o hospital tem de ser um lugar ou um deslugar...
Tem de ser um lugar. A morte está no hospital e o hospital não é fatalmente um deslugar, poderia ser, como a morte acontecia há 20 anos, mas muita coisa mudou.
Morria-se mal no hospital?
Mal não é suficiente. A morte era o grande fator de mal-estar hospitalar. As pessoas morriam num hospital completamente impreparado para isso. Os profissionais foram formados para servir a vida, para curar e cuidar, de repente vêm-se avassalados com a morte a acontecer-lhes nas mãos. E não estão preparados. Em 1970, 19% dos portugueses morreram em hospitais, em 2010 foram quase 60%. No espaço de uma geração houve uma inversão que do ponto de vista civilizacional tem um profundíssimo significado. Juntar estes números foi avassalador, não se tinha a noção disto. A mudança aconteceu no espaço de uma geração.
O que mudou entretanto...
Os cuidados paliativos são um lugar de regeneração da medicina.
É por isso um defensor deles...
Nos cuidados paliativos o mistério do homem subsiste. Os cuidados paliativos surgem num contexto histórico muito recente, na década de 1960, mais precisamente em 1967, em Inglaterra. Foi a década da consolidação da explosão tecnológica e da aceleração da tecnologia na medicina. E os cuidados paliativos são a mais humana das medicinas. De alguma maneira os cuidados paliativos são, no contexto médico, um movimento de contracultura, e não podem deixar de o ser. Porque são os únicos que conscientemente servem o homem que morre, todos os outros cuidados iludem esta dimensão. E, sem consciência de que o homem morre, a medicina é uma frustração para quem a pratica.
É isso que transmite aos seus alunos de Medicina, nas aulas de Antropologia Médica, na Faculdade de Medicina do Porto?
No São João fizemos um inquérito sobre a morte, sobre os doentes que morrem no hospital e a relação dos profissionais com esses doentes. Foi aqui que ficou a céu aberto o drama que os profissionais de saúde viviam. Responderam mais de mil pessoas, o que foi imenso. Uma questão destas, que era calada, acabou por ser agarrada pelos profissionais para se expressarem. Uma das perguntas era sobre se a formação os preparava para lidar com este fenómeno, eles disseram que não. Nem a formação universitária nem a formação em exercício. A morte não existia, mas afinal existia.
Mas o que lhes diz nas aulas?
Começo por lhes apresentar um slide com o flyer publicitário de uma clínica que tem um condutor de F1 sentado numa marquesa e depois tem uns médicos a fazerem-lhe exames, mas vestidos como mecânicos. E eu começo por lhes dizer: "Se isto é assim, se fazem isto para venderem serviços médicos, é porque é isto que as pessoas procuram na medicina. É isto que quereis ser? Tanto trabalho que tivestes para entrar na faculdade para agora as expectativas em relação a vocês serem apenas de mecânicos que concertam máquinas avariadas? Mas depois digo-lhes outra coisa: quando as pessoas estão de facto doentes procuram um médico como quem procura Deus. A verdadeira religião hoje é a medicina. Digo-lhes também: a medicina não é só sucesso. Não admitir a mortalidade do homem a quem tento curar é sacrificar o homem.
Isso leva-nos à eutanásia? Foi um defensor do não.
O grande problema de hoje é a distanásia, não é a eutanásia. A eutanásia, se a houvesse, seria completamente residual. A distanásia é que é um crime quotidiano nos hospitais, porque não se aceitam os limites. Se procuro servir o homem abdicando do conceito e da experiência de que é mortal, vou violentá-lo. Prolongar vidas indefinidamente, fazer-lhe exames, aplicar medidas invasivas a um doente que está para morrer para lhe dar mais umas horas de vida é violentá-lo. A distanásia é uma das questões fundamentais dos dias de hoje e é o caldo de cultura da eutanásia.
Tem que ver com o definir e respeitar os limites?
Antes de os respeitar é necessário ter consciência de que existem. Esse é o grande problema da medicina tecnológica. Dizia o padre e Prof. Luís Archer que a tecnociência tem um axioma fundamental. Tudo o que é possível deve ser feito. E o que hoje não é possível amanhã será e far-se-á. Este axioma está a animar muito o desenvolvimento da medicina - quando falo da medicina falo do conjunto de ciências que hoje estão conexas. Aliás, hoje esse é outro dos problemas da medicina, tem cada vez mais intervenientes não médicos. Onde fica o suporte humanista que à partida é expectável que exista por parte dos médicos?
A questão dos limites é o desafio para o futuro?
É uma questão fundamental, não só para a medicina, mas para o futuro do homem. É grave o que está a acontecer na história. Conheço pessoas que poderiam ter filhos naturalmente mas que optam por recorrer à procriação medicamente assistida, a barrigas de aluguer. Pergunto: qual é o lugar da tecnologia? É substituir o humano em obediência ao desejo? Alguém que pode ter filhos naturalmente, e não o faz porque quer e pode? Estamos a matar a natureza do homem. Estes são os riscos de não se estabelecer limites.
E o que se pode fazer?
Confesso que não sei. Deus foi substituído. A ideologia salutarista ou sanitarista, não sei se lhe posso chamar assim, tornou-se dominante. Neste momento, o bem e o mal já não são definidos a partir de considerações morais, objetivas, ou teologicamente, já não digo antropologicamente, fundamentadas. Hoje, o bem e o mal são o que faz bem e o que faz mal, se te faz bem, faz. Se não faz, não faças. A medicalização da condição humana é uma realidade em curso, e é um prisma redutor para pensar o homem, para pensar a vida do homem. Hoje os processos existenciais são processos medicalizados... Dou um exemplo para se perceber até que ponto é que isto afeta o fenómeno humano e a vivência humana. A experiência do sofrimento é fundamental na vida das pessoas para o amadurecimento pessoal. Pode não ser politicamente correto dizer isto, podem ainda dizer que sou dolorista e masoquista. Que o digam. Não tem mal nenhum. Tenho 18 anos de vida no Hospital de São João, tenho reflexão pessoal e leituras para procurar interpretar aquilo que estava a viver para poder ajudar aqueles de quem era interlocutor. Falo dos doentes, dos seus familiares, mas também dos profissionais de saúde. E é preciso dizer isto, os profissionais de saúde sofrem muito, muito mesmo.
O sofrimento que testemunhou no hospital mudou-o?
O sofrimento é um lugar de encontro com a própria verdade. O sofrimento interroga e é pela interrogação que o homem caminha na perceção do seu mistério. O sofrimento era uma experiência eminentemente pessoal, que amadurecia a pessoa, que a punha em causa e a interrogava. Hoje, é técnica e farmacologicamente gerida por especialistas e por isso há faculdades interiores da pessoa que ficam por desenvolver. Nos hospitais, os padres têm a tradição de serem interlocutores na questão do sofrimento. E não podem desertar desta missão.
Para onde é que isto nos pode levar?
Não costumo pensar para onde é que isto nos pode levar, costumo gastar a minha energia interior à procura de como impedir que isto nos leve para onde quer que seja. Uma vez li um livro que me marcou imenso, era eu diácono, estava na paróquia de Santo Tirso como estagiário. Era de Marshall McLuhan, em que ele dizia que "o futuro mais do que de consciencializadores ia precisar de conscientizadores". O futuro ia precisar de pessoas que revelassem às pessoas que são sujeitos de uma consciência. Ser sujeito! É aqui que tudo entronca, se não acontece não será possível uma relação autêntica com Deus. O Deus de Jesus Cristo é o Deus de sujeitos livres.