"Estamos a ver em relação ao assédio a primeira fase do que se passou na violência doméstica"

<strong>Investigadora e professora catedrática de sociologia no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, fundadora do respetivo Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, coordenou em 2015 um estudo sobre assédio sexual em meio laboral que coloca Portugal entre os países da Europa com maior taxa de assédio. Vê a atual "onda" de denúncias como "um movimento sem retorno."</strong>
Publicado a
Atualizado a

É como se de repente, em termos mediáticos e até políticos, se tivesse descoberto que existe assédio sexual e que é um problema, que não pode ser desvalorizado. Como vê esta súbita descoberta?

Há muitos anos que os movimentos feministas andam a denunciar a existência do assédio sexual. A questão é sempre saber como estas questões são vistas pelas pessoas fora do movimento. E acho que nos EUA houve um momento importante, em que o verniz estalou, que foi quando Trump se assumiu como assediador. Percebeu-se a contradição completa entre os discursos que se fazem sobre a total igualdade entre mulheres e homens e a existência de um presidente eleito que é um sexista, um assediador. Isso coincide com a existência de uma geração de mulheres mais jovens que começa a despertar para estas questões e se sente prejudicada. E quando começam a denunciar dá-se o efeito de se sentir que se pode falar do assunto. Porque o exemplo é muito importante.

Não tem também a ver com a desnaturalização de certos comportamentos, com a ideia de que já não têm de se suportar certas coisas?

Sim. Uma das coisas que comecei a estudar no início da minha carreira foi o divórcio constatei que as pessoas deixaram de suportar situações insuportáveis. É um processo, o de não aceitar mais a menorização da mulher. É algo de que tenho falado muito, que tem a ver com passar da ideia de mulher-natureza para mulher-indivíduo. E no caso do assédio nas relações de trabalho tem muito a ver com o facto de as mulheres verem o trabalho como um lugar de realização, e não como algo acessório ao papel de mãe e esposa.

O caso de Larry Nassar, médico de desportistas de alta competição, inclui vítimas crianças e adolescentes. Mas tem-se incluído no assédio, quando é abuso sexual de menores.

Sim, provavelmente se fosse com rapazes falar-se-ia de pedofilia. Há mulheres que tinham seis anos, 13 anos à época do abuso reportado. É interessante, porque é uma forma de naturalizar o assédio sexual das mulheres por homens: mesmo quando elas são crianças não é colocado no campo do anormal.

No estudo que fez concluiu que 12,6% da população ativa já foi vítima de assédio sexual no trabalho; nas mulheres a percentagem é 14,4%. É muito ou pouco, comparando com outros países?

É muito elevado. Mas desceu muito em relação a um inquérito semelhante de 1989, da Lígia Amâncio e Luísa Lima, em que era 34,1%. E importante constatar que em 1989 as mulheres diziam "fiz de conta que não notei". Agora é: "Mostrei imediatamente desagrado".

Surgiu uma denúncia de uma jovem desportista de Muay Thai em Portugal. Mas tem havido muito poucas denúncias. As portuguesas ainda não estão capazes?

No inquérito as pessoas diziam que mostravam desagrado mas pouco mais faziam. A ideia com que fiquei foi que tinham pouca capacidade para denunciar. Há fatores muito importantes para que se avance: a condenação moral do ponto de vista social, o compromisso das empresas e organizações em geral de cima a baixo (há empresa nos EUA em que as chefias intermédias são responsabilizadas), o compromisso político no sentido de haver leis, e a ação a nível jurídico e judicial. Mas creio que o que estamos a viver agora em relação ao assédio sexual é a primeira fase do que se passou na violência doméstica nos anos 1990, quando se começou a denunciar o assunto. A consciência social em relação à violência doméstica hoje está muito mais forte -- estas coisas são um processo de longo curso. E portanto acho que é um movimento sem retorno, o da luta contra o assédio sexual. Pode haver movimentos de recuo -- ninguém gosta de perder privilégios, e os homens têm um poder, um ascendente sobre as mulheres que custa a perder -- mas não vai parar. Como dizia William Goode, as boas ideias, como a liberdade e igualdade, são muito atrativas e viajam depressa.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt