Estado de guerra: razão e razões
Para a minha amiga poeta israelita Tal Nitzan e para o meu amigo poeta palestiniano Anas Alaili.
Como ponto de partida, lembremos a quebra de confiança do povo palestiniano na Autoridade de Ramallah, dominada pelo Fatah, que levou à vitória eleitoral do Hamas em 2006, seguida de uma guerra entre as duas fações, que deu origem a duas legitimidades, a do Fatah e a do Hamas, dualidade que foi persistindo, porque não voltaram a celebrar-se eleições na Palestina desde então.
Criaram-se assim, na prática, duas autoridades palestinianas: em Gaza, o Hamas, teocrático, partidário de um islamismo radical e expressamente defensor da expulsão total dos israelitas e da destruição do Estado de Israel; na Cisjordânia, onde entretanto cresciam as ocupações ilegais de território e as expulsões ilegítimas dos palestinianos por parte de Israel, uma Autoridade Palestiniana pouco visível e eficaz, condicionada e limitada por Israel, mas distribuidora dos auxílios internacionais à Palestina, laica e aberta a todas as religiões, apoiante da solução dos dois Estados e fiel aos acordos Rabin - Arafat de 1993, que entretanto foram esquecidos e enterrados pela comunidade internacional, conforme os desejos da Extrema-Direita israelita e do islamismo radical.
O apagamento da Palestina do mapa das preocupações e realidades internacionais, encetado pelos chamados "Acordos de Abraão" e que iria culminar no acordo israelita-saudita que estava a ser preparado, levou a uma reação inesperada do Hamas. Este movimento quis fazer lembrar, da forma mais cruel e consequentemente mais mediática, que a questão palestiniana não podia ser apagada do mapa, trazendo ainda para mais perto desta batalha o Irão xiita, e fazendo assim gorar as aproximações em curso entre alguns Estados árabes e Israel.
Compreender as causas próximas e remotas de uma determinada ação, explicar que um facto trágico "não surgiu do vácuo" (António Guterres) não constitui, de modo algum, uma aprovação ou justificação de um massacre de civis inocentes, com requintes de crueldade sádica e exibicionista, que não podemos deixar de qualificar, sem dúvidas nem restrições, como uma ignóbil ação terrorista.
Mas a resposta de Israel, ao bombardear um povo até à exterminação, não ajuda a sua causa, agrava os ódios e os radicalismos, fecha ainda mais a porta a soluções e cria um caldo de cultura na opinião pública internacional fortemente hostil ao Estado israelita.
E há um outro dano colateral: fazendo esquecer Abbas, a Autoridade Palestiniana e o seu Governo que, ainda que ineficaz, é laico e moderado e disponível para reconhecer Israel no contexto da solução dos dois Estados, está-se a contribuir para identificar a Palestina com o Hamas, quer pela crescente popularidade desta organização junto do desesperado povo palestiniano, quer pelo esquecimento internacional da Autoridade de Ramallah, que se revela bem quando se pedem contas ao seu representante pelas ações do Hamas...
No interior das nossas sociedades e opiniões públicas, onde a análise racional cada vez mais cede o passo à identificação tribal, dividem-se os espíritos entre os pró-Israel, que compreendem todas a brutalidades da operação militar em curso contra os civis de Gaza e as justificam; e os pró-Palestina, que chegam ao ponto de classificar a ignóbil ação do Hamas como legítima no quadro da justa luta do povo palestiniano. Esta imersão digital em que vivemos potencia a natural tendência para encontrarmos em cada situação "os bons" (com que nos identificamos, façam eles o que fizerem) e "os maus" (que merecem obviamente todas as crueldades e injustiças que lhes sejam dirigidas).
Este estado emotivo e maniqueísta da opinião pública não favorece a moderação, nem o compromisso e torna dificilmente viável a diplomacia.
No tempo do chamado "processo de paz no Médio Oriente "(PPMO), costumávamos dizer que havia nele "muito processo e pouca paz". Hoje nem há paz, nem há processo...
Diplomata e escritor