Estado de desgraça

Infelizmente, não tenho muito a acrescentar à generalidade das opiniões destiladas nas televisões por dezenas, talvez centenas de comentadores inflamadíssimos: o que se passou esta semana entre as estimáveis figuras que tomam conta de nós andou demasiado próximo da palhaçada, se quisermos aproveitar um insulto despenalizado e ser brandos.
Publicado a
Atualizado a

Se não quisermos, podemos dizer que a coisa foi, e ainda é, uma canalhice cujas consequências custarão caro a muita gente, mas não, provável e infelizmente, às criaturas que as provocaram. Não sei (embora suspeite) se a maior quota de responsabilidade por esta vergonha cabe ao dr. Passos Coelho, ao dr. Paulo Portas, ao dr. Vítor Gaspar, ao prof. Cavaco ou ao esposo da hipotética ministra das Finanças. Sei que é impossível todos estarem isentos de culpa num dos episódios mais embaraçosos nesse embaraço perpétuo que em Portugal faz as vezes de democracia.

Só estranho que as resmas de comentadores disponíveis prefiram lamentar a vergonha e o preço da vergonha (em descidas na Bolsa e subidas dos juros da dívida) em lugar de celebrar o estertor de um Governo que quase todos queriam morto. Pior ainda, não vi uma única luminária explicar como concilia as previsões anteriores (a queda do Governo será óptima para o País) com as lamúrias actuais (as notícias da queda do Governo fizeram muito mal ao País). Dito de outra maneira, os mesmos génios que juravam que as políticas de austeridade nos conduziriam à Grécia garantem agora que o caos comprometedor das políticas de austeridade nos conduzirá à Grécia. À primeira vista, a Grécia parece um desígnio inevitável. E à segunda vista também.

Se é evidente que os acontecimentos em curso desqualificam os respectivos protagonistas para sequer integrar os órgãos sociais de uma cooperativa de habitação, é igualmente claro que ninguém concorre para entusiasmar as massas ou, vá lá, convencê-las a votar com um mínimo de convicção, ou a votar de todo, numa das opções disponíveis em eleições antecipadas. Em suma, o PS mete medo.

Já a alternativa à falta de alternativas implica uma mistela dita de unidade cozinhada pelo prof. Cavaco, ideia prodigiosa não fossem duas ou três insignificâncias: não existem milagreiros capazes de salvar isto; se existissem, os milagreiros não aceitariam a tarefa; se aceitassem, o prof. Cavaco não disporia de crédito para impô-los à ralé.

Anda meio mundo à procura de uma solução para um problema que, se calhar, não a tem. Com a continuação de um Governo condenado ou condenados à caricatura de uma paródia chamada Tozé Seguro, a verdade é que estamos desgraçados. Ou gregos, para os apreciadores de eufemismos.

Sexta-feira, 5 de Julho

A estátua de Belém

Antes da chegada de Cavaco Silva à presidência, alguns dos seus adversários avisavam que as interferências do homem ajudariam a tornar o País ingovernável. Naturalmente, estavam enganados, e houve gente, entre a qual modestamente me incluo, que à época lembrou a tendência do prof. Cavaco para a observância institucional ou, de acordo com perspectivas menos simpáticas, para se desembaraçar de responsabilidades. Mas ninguém seria capaz de prever que a aversão do prof. Cavaco a interferir no quer que fosse é que ajudaria a tornar o País ingovernável. E talvez inviável.

O problema começou a notar--se aquando dos delírios em crescendo que marcaram a governação de José Sócrates. Num regime em que Santana Lopes se vira enxotado (e antes empossado) por uma decisão de Belém inexplicável à revelia de conspirações repugnantes, é ainda hoje extraordinária a tolerância dedicada pelo prof. Cavaco ao estimulante processo de destruição das finanças pátrias característico daqueles anos. Ou seja, a fim de garantir uma reeleição relativamente pacata, o PR deixou o Governo à solta e os cidadãos à nora. Enquanto os apetites do eng. Sócrates apenas eram interrompidos por comiseração de Teixeira dos Santos e, em seguida, do eleitorado, a actividade do prof. Cavaco na altura não se distinguia da de um homem-estátua. Recentemente, passou a distinguir-se: o homem--estátua mexe-se mais.

É difícil comentar o comportamento do altíssimo magistrado da nação durante o início da corrente crise política sem arriscar um processo por calúnia, nos tempos que correm demasiado fácil. O principal ministro de um executivo e o líder do partido que o sustenta em coligação evadem-se sem que o prof. Cavaco mova uma pálpebra ou, preferencialmente, convoque de imediato as personagens envolvidas de modo a perguntar-lhes porque escolheram o poder para exercer as suas brincadeiras. Em vez disso, durante longas horas e longos dias, o prof. Cavaco permitiu que as trapalhadas se sucedessem e a atingissem um ponto sem retorno, ou um ponto em que o retorno é inacreditavelmente ridículo. Quando, enfim, Belém acordou, Portugal entrara em coma. E se, desde o princípio, o prof. Cavaco teve notório azar com os garotos, perdão, com os estadistas que lhe tocaram, nós não tivemos grande sorte com o prof. Cavaco que nos tocou. Ou tocaria, se acaso se movesse.

Sábado, 6 de Julho

A ideologia do desprezo

A propósito do forrobodó vigente pelas bandas do Governo, o meu amigo Carlos Carapinha, que é alentejano mas não luta pela reforma agrária, recordou-me uma frase do falecido colunista Auberon Waugh: "Estou convencido de que os ingleses inteligentes, instruídos e educados não são nem de esquerda nem de direita, mas aborrecem-se com a política e olham todos os políticos com desprezo. Se eu tiver uma ideologia, é esta." (tradução minha).

O grande Waugh raramente se enganava e, com a devida licença, nos momentos de optimismo acho que a definição começa a aplicar-se aos portugueses. De facto, é inimaginável uma pessoa sã orientar-se segundo preceitos teóricos e confiar a vida a sujeitos que, assaz naturalmente, se movem em função de interesses pessoais. À semelhança dos atoalhados, das redes telefónicas ou das cortiças, a política é um sector económico cujos agentes procuram a prosperidade. Ao contrário dos demais, o sector da política não tem um produto apetecível para o público em geral, logo finge dedicar-se ao bem comum. Ao contrário dos demais, o sector da política não investe capitais próprios, logo saqueia o dinheiro alheio. Ao contrário dos demais, o sector da política é em larga medida inútil, logo necessita da mentira e da crença na mentira para se legitimar.

Embora inúmeras almas sensíveis se aflijam imenso com o crescente descrédito da classe política, o descrédito é condição indispensável à lucidez. Num mundo ideal, os políticos, incluindo os que fazem carreira a proclamar a sua aversão à política, apenas nos suscitariam uma mistura, variável conforme os dias, de pena, nojo e indiferença. E se por enquanto esse mundo é uma miragem, a verdade é que Pedro Passos Coelho e Paulo Portas, como muitos dos seus antecessores, prestaram um valoroso serviço à nação. Com um bocadinho de sorte, o patético espectáculo de vaidade e garotice que enfeitou a semana deixou os portugueses mais desconfiados, mais autónomos, mais ricos de espírito. Infelizmente, também nos deixou mais pobres no resto.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt