Esta semana morreu José Morilhas, um homem bom

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Ontem de manhã, José Morilhas fez tudo o que costumava fazer na sua quinta desta freguesia rural de Palmela. Tomou o pequeno-almoço, foi ao alpendre de casa, olhou para o relvado sempre bem cuidado, soltou a cadelita Luna - que o recebeu eufórica, como sempre - e partiu em direção ao trabalho, que já era há muitos anos um prazer.

É conhecida a qualidade da fruta que faz crescer e que depois chega aos mercados da zona do Barreiro, onde viveu e tinha casa. Ia lá cada vez menos, revisar a caixa do correio, tratar deste ou de outro assunto e ala que se faz tarde. Era aqui, na Quinta dos Sapos, a cento e poucos metros de onde vivo, que tinha encontrado a tranquilidade dos anos da reforma.

Subiu para o trator ainda pela fresquinha e percorreu as filas de laranjeiras em busca do que fazer. E há sempre tanto para cuidar no terreno. Deviam ser umas 11h da manhã quando decidiu que já chegava. Deixou o trator no pomar para pegar ao serviço umas horas depois. Despiu o fato-de-macaco, herança e orgulho dos muitos anos em que trabalhou, nas décadas de 1970 e 1980, nos estaleiros da Setenave, à saída de Setúbal, estuário do Sado adentro. Descalçou as botas e as meias, vestiu calções e t-shirt e olhou para o fogareiro. Era tempo de fazer o almoço: duas postas de salmão à espera dele e da mulher. Entrou em casa, encheu um copo com água e juntou-lhe açúcar, uma das suas formas de controlar a diabetes. Quando sentia uma quebra do organismo, era assim que se revitalizava.

No dia anterior, ao fim da tarde, tínhamos estado à conversa neste caminho de terra sem nome a que chamamos rua. Empurrámos o velho Opel Corsa da Filipa pela vereda, rimos de ter ficado sem gasolina e planéamos um corte de sebe para fim de setembro. Morilhas tinha jeito para geringonças, gostava de inventar formas de otimizar o trabalho no campo. Tinha juntado ao trator um braço mecânico que lhe permitia cortar os arbustos sem ter que se esforçar em demasia. E queria aplicar a fórmula no nosso caminho da entrada. "Tá feito!", disse-lhe. "Em setembro, tratamos disso".

Vivemos aqui há três anos e, na primeira vez que o alarme da casa ao lado tocou, foi ele o primeiro a aparecer a perguntar se estava tudo bem connosco. Não nos conhecíamos de lado nenhum, mas isso não o deteve. Entrou nas nossas vidas sem pressas, tranquilo, com um sorriso e uma mão sempre pronta a ajudar. "Ó Ricardo, as hortênsias sem água não vão a lado nenhum". E lá eu me sentia culpado pelas flores ainda não estarem tão bonitas como as dele. "É o mesmo com as árvores de fruto", disse-me. "Esta terra é boa e dá tudo, mas sem água, esqueça".

Numa das primeiras tardes aqui vividas a campainha tocou insistentemente. Os cães ladravam como doidos. Ao portão estava José Morilhas com uma caixa de laranjas. "E tenho lá mais, quando quiser ir buscar". Eram maravilhosas, aos gomos ou em sumo. Não lhe entreguei ainda a caixa, está algures pela arrecadação. Quando as nossas galinhas começaram a dar ovos, devolvemos a gentileza. Nesse dia, ao telefone com a filha, Célia, José disse que ia fazer uma açorda com os ovos da Filipa e do Ricardo.

Era habitual passar à nossa porta na bela máquina agrícola, agora abandonada no pomar. Ia levar o lixo ao contentor e, em algumas dessas vezes, aproveitávamos para pôr a conversa em dia. Já não era só sobre o campo e o caminho de terra que falávamos. Há coisa de um ano, descobrimos que tínhamos muito mais em comum do que pensávamos. José foi colega da minha mãe na Setenave, parceiro de protestos laborais, camarada de tantas lutas. Voltaram a ver-se aqui, quase 40 anos depois. Reconheceram-se, retomaram o contacto, correspondiam-se no Facebook.

Todas as semanas, Morilhas reunia-se com os amigos desses tempos num animado almoço de fim de semana. Nas segundas-feiras a seguir, lá ele me dizia: "O seu tio e o seu pai mandam cumprimentos. Sabe quem é que lá esteve também no almoço? O Domingos, o Pires, ...", este, aquele, aquele outro. Nesta segunda-feira, depois de empurrarmos o carro e tirado as medidas à sebe, ficámos lá fora à conversa um bom tempo. Mais umas gargalhadas e umas tiradas sérias. A sabedoria dos 75 anos, o amor pela causa, a entrega total à prática da boa vizinhança já nos tinham conquistado há muito. "O que não falta neste mundo são Trumps, ó Ricardo". Mas olhe que o homem é capaz de ganhar as eleições, provoquei-o. "E então? Será que eles são assim tão diferentes? Sejam Republicanos ou Democratas, aquela gente quer é ir para a guerra, não se preocupam com mais nada nem com ninguém". Calei-me.

Ontem, ao fim da manhã. José Morilhas terá levado o copo de água com açúcar à boca, pousou-o novamente na bancada da cozinha e buscou o sofá onde sempre se sentava. Refastelou-se, colocou as pernas na posição de descanso que sempre escolhia, ligeiramente de lado, uma para cada lado de forma discreta. Os braços ficaram assentes no corpo, arqueados. A televisão estava ligada. Encostou a cabeça para trás e fechou os olhos. Sem dor, sem sofrimento, no local onde sempre quis estar.

José Morilhas deixa mulher, filhos, netos, genro e nora, família numerosa e solidária, muitos amigos e dois vizinhos destroçados com o que aconteceu. Os nossos dias e o caminho de terra sem nome a que chamamos rua nunca mais vão ser os mesmos.

Obrigado por tudo, camarada Morilhas.

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