Esta semana, em Angola...

Em Harare, a deposição foi com tanques na rua. Em Luanda, com uma assinatura em legítimo decreto. Há que reconhecer que esta é superior àquela
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Na madrugada de quarta-feira, o presidente do Zimbabué Robert Mugabe foi derrubado por um golpe de Estado. Militares ocuparam as ruas da capital, Harare, invadiram o palácio presidencial e prenderam Mugabe. Nesse mesmo dia, em Luanda, o presidente João Lourenço exonerou Isabel dos Santos de presidente da Sonangol, a maior empresa angolana. Foram dois importantes acontecimentos políticos.
Os dois acontecimentos partilharam o mesmo dia e têm proximidade geográfica, ambos países pertencem à mesma região, a África Austral. Mas isso foi mera coincidência. Comecei por a assinalar, à coincidência, para sublinhar o que houve de diferente entre o acontecimento de Harare e o de Luanda. Ao contrário do habitual, com as nossas pretensas certezas sobre Angola, essa diferença foi pouco comentada por cá. É pena, como explico a seguir.

Mugabe é da geração dos políticos africanos que conquistaram a independência e estava há 37 anos no poder - tão agarrado a ele que, dizia-se, só sairia por morte ou golpe militar. Em Angola, o presidente José Eduardo dos Santos (JES) esteve no poder durante 38 anos, até setembro passado. Dizia-se dele - líder do partido MPLA que governava o país desde a independência - que nunca largaria o poder. As primeiras eleições angolanas, em 1992, foram controversas e acabariam em guerra civil, mas JES ganhou as eleições em 2008 e 2012, que foram reconhecidas pelos organizações internacionais.

Em 2017, JES não quis mais um mandato presidencial, o MPLA indicou outro candidato, João Lourenço, que foi eleito. Dizia-se: o novo presidente angolano será o que JES deixar que ele seja. Foi essa a quase unânime opinião portuguesa. As suspeitas de que João Lourenço era mero testa-de-ferro baseavam-se no monolitismo que se empresta ao MPLA e à sociedade angolana em geral. E ao facto de JES continuar na liderança do partido e de os filhos do ex-presidente continuarem à frente de grandes grupos económicos. E, sobretudo, Isabel dos Santos mandar na Sonangol.

Esta semana, pois, confirmou-se que Robert Mugabe saiu da cadeira do poder como estava previsto, isto é, contrafeito. Não por morte, que seria o mais provável, já que tem 93 anos, mas por golpe militar. E, atendendo à conceção que por cá se tem do poder em Angola, esta semana também teria assinalado o fim do poder de JES. Pois se a sua filha Isabel foi despedida de "patroa" da Sonangol, então, José Eduardo dos Santos acabou! A Angola monolítica não permitiria outra explicação... Foi assim? Não sei. Sei é que houve dois acontecimentos esta semana. Em Harare, a deposição foi com tanques na rua. Em Luanda, com uma assinatura em legítimo decreto. Há que reconhecer que esta é superior àquela.

Na esteira do que tanto se disse por cá, em setembro, sobre a mudança de poder em Angola - que, aliás, se garantia ser falsa mudança - também se pode fazer um ligeiro entorse ao raciocínio do pensamento do costume: o que aconteceu, terá sido um golpe de Estado da criatura (João Lourenço) que derrubou o criador (JES)... Pode-se fazer esse raciocínio, pode-se tudo. Eu, que não conheço as relações de força, não vou por aí. Mas dou-me conta que Angola é capaz de mudar - ela própria, com decisão entre angolanos - através de mecanismos normais das sociedades com regras: um partido muda de candidato, o candidato ganha eleições e o novo presidente manda e muda pelo menos certa política. Sem tanques, só com a caneta. Não é de oferecer benefício de dúvida, é de constatar um facto. E sublinho-o numa longa crónica porque estou farto de darem só fama de pestífera a Angola. Ora ela será isso, mas é também outra coisa.

A libertação nacional foi feita por três partidos (MPLA, FNLA e UNITA), alicerçados cada deles numa das três etnias principais do país. Depois, houve uma longa guerra civil com laços também étnicos-regionais - já para não falar de Angola ter sido capim espezinhado pela Guerra Fria, cubanos e russos contra sul-africanos e americanos... Enfim, parecia estar destinado a Angola ser um país partido. Como o vizinho Congo (Kinshasa), desgovernado e com as províncias a implodir. Ou como o historicamente próximo Moçambique, com ainda agora regiões ocupadas por um partido armado e vilas, recentemente, sequestradas por guerrilheiros islâmicos. Ora Angola, das suas guerras, fez uma identificação nacional e ofereceu-se uma capital real. As províncias podem criticar as políticas mas reconhecem-se na pertença a um país. O que é hoje cada vez mais raro em África.

As guerras angolanas foram terríveis, sobretudo a devastadora guerra civil, que só com a morte de Jonas Savimbi, em 2002, acabou. Acabou, mesmo e logo. Há década e meia que um civil angolano pode ir de uma capital de província para qualquer outra porque soldados desmobilizados e guerrilheiros derrotados não se tornaram ladrões dos caminhos. O que se falou das kalashnikovs pelas emboscadas fora... - e não aconteceu. A integração da UNITA, partido guerrilheiro, na vida política oficial e a dos seus chefes militares no exército regular é notável. É conseguimento só possível porque dos dois lados, governamental e rebelde, houve dirigentes prudentes - condição sapientíssima na política moderna. A paz da guerra civil angolana foi um case study que merece atenção.

Deveríamos em Portugal saber mais desse percurso da sociedade angolana - desse e outros, por exemplo, o papel importante das mulheres na política e na sociedade civil. Por exemplo, como de uma língua estrangeira, usando-a com amor e imaginação, que já não temos para ela, fizeram do português, a língua deles, um pilar de Angola. E sabendo dessas coisas longínquas para as quais geralmente temos opinião definitiva e atrevida, daríamos conta que em Angola há mais vida para lá das nossas opiniões.

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