Esse Eça

Publicado a
Atualizado a

Nem falta anúncio do escritório de advocacia

Numa caligrafia que se já não usa, em papel com os timbres ilustrados dos hotéis onde se hospedava ou em postais com vistas dos sítios onde se encontrava, o advogado que se tornou diplomata escrevia, escrevia, escrevia.

Todo o português escolarizado lhe conhece os romances e, também, a silhueta. Afinal, o nosso século XIX, se não foi como Eça de Queirós o descreveu, então passou a ser como ele disse que era, dos hábitos galantes aos tiques da conversa lisboeta. "Há trechos dele", como sintetizava o seu cúmplice Ramalho Ortigão, co-autor de O Mistério da Estrada de Sintra, "que diríamos feitos com sangue, com lágrimas, com pérolas líquidas, com enxurro, com ouro, com lama e com pó de brilhantes".

A gigantesca Fotobiografia de A. Campos Matos (Ed. Caminho), se mostra muita iconografia conhecida do escritor, revela também clichés menos vistos, manuscritos mais curiosos, documentos diversos. A frase com que abre o livro de 430 páginas é, aliás, esclarecedora: "Parece indubitável que Eça de Queiroz teve desde cedo o gosto da fotografia e de se fazer fotografar". Mas o autor ainda juntou a essa colecção de poses variadas muitas imagens da geografia queirosiana e acrescentou-lhe também um vasto acervo de retratos feitos por Bordalo Pinheiro, Columbano ou Henrique Medina, de esculturas assinadas por Teixeira Lopes, Leopoldo de Almeida ou Abel Salazar, das suas personagens recriadas por Bernardo Marques, João Abel Manta ou Paula Rego.

A organização do livro, que parece ir de encontro à curiosidade de quem quer conhecer a detalhada existência do criador de títulos como O Crime do Padre Amaro e Singularidades de Uma Rapariga Loura (que o DN ofereceu como brinde aos assinantes), está arrumada de forma temática, com capítulos onde se abordam desde os antepassados aos descendentes, do dinheiro às doenças, da sua opinião acerca do caso Dreyfus ao que pensava sobre os ideais republicanos, socialistas ou anarquistas.

Mas não bastava publicar material tão distinto como as provas corrigidas de Os Maias - "só tem rival em I Malavogli do italiano Giovanni Verga [que Visconti adaptou ao cinema em A Terra Treme] e em Buddenbrooks de Thomas Mann", proclamou Jorge de Sena - e as capas dos Almanaques Enciclopédicos, imagens da praia da Granja e da estação de Tormes, panoramas de Sintra e de Leiria, as fachadas do Grande Hotel Central no Cais do Sodré ("falam-se todas as línguas") e da Casa Havaneza no Chiado, as nomeações como cônsul em Havana ou em Bristol, a matrícula na Universidade e a certidão de óbito, os cartões de visita e os monogramas em envelopes, a foto da cama onde morreu o autor de A Cidade e as Serras e a notícia da sua morte publicada no New York Times.

O livro nem ignora "o gosto que Eça sempre manifestou pela comezaina" e que - além de justificar os estudos de Andrée Crabbée Rocha e de Dário Castro Alves acerca deste aspecto da personalidade do escritor - "tantos distúrbios gástricos lhe causou". Nada parece ter escapado a A. Campos Matos, nem mesmo a descrição das seduções amorosas, que Eduardo Lourenço considera "o mais precioso, minucioso, criativo inventário da vivência erótica, não apenas na língua portuguesa mas porventura da literatura universal".

Não faltam sequer retratos e perfis das figuras com que Eça de Queirós contactou ou que o influenciaram, numa vasta galeria onde cabem Proudhon e Comte, Camilo e Antero, Vítor Hugo e Baudelaire, José Fontana e Manuel Arriaga, Flaubert e Zola - a que se juntaram figuras como a cantora Adelina Patti ou a actriz Eleonora Duse.

Há ainda espaço para cada leitor ficar a pensar como era a vida no Colégio da Lapa (até se pode apreciar o horário com os tempos destinados às orações e ao recreio), o que ensinariam os professores de Direito no seu tempo em Coimbra (há a lista de nomes e cadeiras), como conseguia redigir sozinho o jornal O Distrito de Évora ou quem seria, afinal, aquela bela desconhecida de Angers que surge em várias fotos.

E como seria o seu quotidiano em Newcastle, onde acamaradou anos a fio com o cônsul sueco, que não acreditou quando António Feijó lhe disse que aquele Queirós "encantador, pétrit-d'esprit, alegre, bondoso, condescendente, sempre de bom humor e duma inteligência aguda, reverberante" era, simultaneamente, um grande escritor, faceta completamente desconhecida para esse conde Banckow?

Não seria por Eça considerar, como registava numa carta a Oliveira Martins, determinante a sua costela gaulesa: "Os meus romances, no fundo, são franceses, como eu sou, em quase tudo, um francês - excepto num certo fundo sincero de tristeza lírica que é uma característica portuguesa, num gosto depravado pelo fadinho, e no justo amor do bacalhau de cebolada. Em tudo o mais, francês, de província."

E nesta obra, que A. Campos Matos diz ser um "subsídio para uma biografia", nada parece faltar para escrever acerca dessa figura que Alberto de Oliveira descrevia a "[atar] as suas gravatas com tão seguro gosto como as suas frases". Afinal, como se queixa o autor deste livro, que não esqueceu qualquer pormenor, do brasão de armas da família às homenagens póstumas, apesar de discordar de certas interpretações de Vida e Obra de Eça de Queiroz, de João Gaspar Simões, é lamentável que esteja esgotada há 27 (!) anos a última edição da "grande biografia do nosso romancista" - que originaria, em 1950, a réplica do filho António, intiulada Desafronta à Memória de Eça de Queiroz.

Eça de Queiroz - Fotobiografia mostra o romancista na companhia do grupo do Cenáculo, como um dos Vencidos da Vida, com "o cigarro debaixo do bigode descaído", como o descreveu o conde de Ficalho (Francisco Manuel de Mello Breyner), ou vestindo a cambaia chinesa que lhe foi oferecida pelo Conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro de Melo) depois de publicar O Mandarim. E, também, o mapa da viagem do mestre da ironia e da observação ao Oriente e a reportagem que Eça escreveu no DN, a 18 de Janeiro de 1870, com o título De Port-Said a Suez, o cabeçalho de jornais como a Gazeta de Portugal (onde publicou o seu primeiro texto) e a planta do Porto onde está assinalado o solar de Santo Ovídio (em cuja capela casou), o fonógrafo seu contemporâneo e vasos helénicos, os bouquinistes de Paris onde comprava livros e gravuras e o restaurante Tavares onde gostava de abancar e tertuliar.

O que nunca se conseguirá recuperar é o seu dom de conversador, pois, como garantia Alberto de Oliveira, "ouvi-lo era tão bom, era melhor ainda que lê-lo!" Um aspecto que é sempre realçado nos depoimentos de quem conviveu com o romancista de O Primo Basílio e de A Relíquia - neste romance, sentencia Harold Bloom,o ensaísta que colocou Eça (e Camões e Cardoso Pires) no seu Cânone Ocidental, "reuniu Voltaire e Robert Louis Stevenson em um só corpo, proporcionando-nos um romance genial, uma sátira extraordinária, um triunfo literário singular".

"Ainda estou a ouvir-lhe a voz gutural e metálica", evocava Carlos Magalhães de Azevedo, "proclamando com tranquilidade um paradoxo estupefaciente, contando com inflexões garotas um caso da boémia ou da política, modulando uma reflexão profunda sobre um livro, um autor, uma doutrina". E Maria Amália Vaz de Carvalho, recordando o estado de saúde do já velho romancista de A Capital e de A Ilustre Casa de Ramires, que ia "morrendo aos bocadinhos", concluía que "era tal o encanto daquela palavra colorida, imprevista, cáustica sem maldade, pitoresca e vária, que os ouvintes, fascinados, não podiam mais lembrar-se de que era um homem doente que os estava deslumbrando assim".

Entre diversas evocações, ainda a de Olavo Bilac: "Com o esguio corpo dançando dentro da vasta sobrecasaca inglesa, Eça, nas deliciosas noitadas de conversa íntima, (...) falava quase sempre, porque era um conversador inimitável (...)." O poeta brasileiro acrescentava: "E que conversador! Os seus gestos tinham a expressão das mais cálidas palavras: a mão escorçava, desenhava, coloria no ar o objecto, a pessoa, a paisagem que a frase descrevia. Cenas da morrinhenta vida das aldeias portuguesas, da Palestina, das Canárias, das grandes capitais da Europa iam passando, vivas e palpitantes, pela teia daquele animatógrafo surpreendente."

Ao folhear o álbum de A. Campos Matos, entre facturas de alfaiate e folhetos de editores, percebe-se melhor o que levava aquelas "mãos longas", que Jaime Batalha Reis descrevia com seus "dedos finíssimos e cor de marfim velho", a fazer aquilo que testemunhou Mariano Pina: "já ele tinha enegrecido várias dezenas de papel Whattman."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt