Esquerda perdeu mais de um milhão de votos. O que aconteceu?
As candidaturas do espaço político da esquerda perderam mais de um milhão de votos nas eleições presidenciais face aos resultados de 2016. A soma dos votos obtidos ontem por Ana Gomes, João Ferreira e Marisa Matias não chega aos 900 mil votos - foram 886 549 no total.
Menos do que António Sampaio da Nóvoa conseguiu sozinho há cinco anos - 1 061 232 votos. E, consideradas as quatro candidaturas do espaço da esquerda que se apresentaram em 2016, a comparação é avassaladora: foram então 1,9 milhões de votos, o que representa uma perda superior a um milhão, mais concretamente 1 023 894.
Ana Gomes arrecadou ontem 536 236 votos, cerca de metade do que obteve Sampaio da Nóvoa. Marisa Matias perdeu nestas eleições 304 mil votos, João Ferreira sobe percentualmente face aos resultados do candidato do PCP há cinco anos, mas também perde em número de votos - menos 2525.
Os resultados de ontem da esquerda não comparam mal só com as presidenciais de 2016 - são o pior resulitado de sempre do conjunto dos candidatos de esquerda.
Uma diferença significativa no quadro eleitoral das duas eleições é o posicionamento do PS. Há cinco anos, e ainda que o partido não tenha tomado uma posição oficial, os socialistas alinharam de forma clara ao lado do independente António Sampaio da Nóvoa. Agora, com o PS outra vez sem posição oficial, quase toda a cúpula socialista declarou apoio a Marcelo Rebelo de Sousa - que o próprio primeiro-ministro deu como reeleito em maio do ano passado. A exceção foi o ministro das Infraestruturas e Habitação, Pedro Nuno Santos, que alinhou ao lado de Ana Gomes, e já há meses criticou o posicionamento do partido face às eleições presidenciais.
O que aconteceu à esquerda em Portugal? Os politólogos António Costa Pinto e Paula do Espírito Santo convergem na resposta. Aconteceu-lhe... Marcelo Rebelo de Sousa.
António Costa Pinto sublinha que os resultados eleitorais de ontem vêm confirmar aquilo que "os estudos de opinião já demonstravam" - Marcelo "tinha a maioria do eleitorado socialista e fatias significativas do eleitorado do Bloco de Esquerda e mesmo do PCP".
Os resultados de ontem mostram uma vitória em toda a linha de Marcelo Rebelo de Sousa, que e vence em todos os distritos e concelhos de Portugal. Muitos destes votos vieram da esquerda, concorda também Paula do Espírito Santo: "O que aconteceu foi o fenómeno omnipresente que é Marcelo Rebelo de Sousa. A esquerda acaba por ficar muito subalternizada à figura de Marcelo".
Para a investigadora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, o Presidente reeleito beneficia ainda de uma dinâmica de voto útil à direita "por ser um travão a André Ventura", num contexto de "racionalização do voto". O mesmo princípio é válido para Ana Gomes, à esquerda, por comparação com a candidatura de Marisa Matias.
Para António Costa Pinto a "derrota eleitoral do Bloco de Esquerda" é "culpa própria": os bloquistas sofreram "as consequências da estratégia de radicalização no orçamento, que foi há pouco tempo, ainda estava na memória e não foi percebida, claramente, pelo seu eleitorado". Por outro lado, teve ao lado a candidatura de Ana Gomes, uma "candidata da esquerda, justicialista, cujas diferenças em relação ao Bloco são escassas".
Quanto ao PCP, o investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa conclui que ficou no mesmo sítio onde estava: "Não perdeu, nem ganhou".
E André Ventura, terá ido buscar votos à esquerda, nomeadamente ao PCP, como parecem indiciar os resultados de Beja ou Évora? Quer António Costa Pinto, quer Paula do Espírito Santo, são cautelosos na resposta: essa correlação está longe de ser evidente. "É preciso fazer uma análise mais fina", diz Costa Pinto, lembrando que os estudos de opinião que foram sendo publicados antes das eleições mostravam que o eleitorado do PCP tinha "pouca inclinação" para votar no Chega, um dado que agora é necessário verificar numa análise mais detalhada. Mas o politólogo também refere que o "que parece evidente é que o eleitorado PSD/CDS do Alentejo votou Ventura".
Paula do Espírito Santo também aponta a necessidade de uma análise mais aprofundada, mas relembra os resultados do Chega no Alentejo, nas legislativas, para apontar o que indicia ser uma "tendência de fundo de transição de voto". Uma situação que "não é nova", dado que "se olharmos para o histórico das legislativas vemos oscilações do voto entre o PS e a CDU".
Como nos resultados totais, o segundo lugar foi disputado entre Ana Gomes e André Ventura, sendo que o líder do Chega ficou logo atrás de Marcelo em 11 dos 18 distritos do país - Vila Real, Bragança, Viseu, Guarda, Castelo Branco, Santarém, Leiria, Portalegre, Évora, Beja e Faro.
Ana Gomes ficou em segundo em sete distritos, entre os quais estão Lisboa e Porto, além de Viana do Castelo, Braga, Aveiro, Coimbra e Setúbal.
Estas presidenciais permitem leituras para as legislativas? "Sim e não", responde António Costa Pinto, lembrando que a sondagem à boca das urnas sobre as legislativas "não tem alterações de fundo" relativamente à situação política atual, com exceção do Chega, à direita. "Podemos dizer que o Chega é um partido em crescimento" e pouco mais que isso, o "resto está tudo igual", defende o politólogo.