Esqueçam o Brasil ou "farinha pouca, meu pirão primeiro"
Eram 22h mais ou menos e as luzes do Palácio da Alvorada foram apagadas. Bolsonaro foi dormir, disseram. No resto do Brasil música e rodovias sendo fechadas.
Eu fui votar, enchi o tanque do carro e comprei extras de produtos não perecíveis, farinha inclusive, afinal, pirão se faz com água e farinha.
Se eu acho que podemos ter um golpe? Não, não acho. Mas digo que muitos gostariam. Afinal, um fascista não respeita a democracia e o que significa se respeitar? Que não temos uma população fascista.
Conservadora, demasiadamente crente e religiosa, racista, misógina sem dúvida, mas fascista duvido, alguns certamente, mas sempre há "alguns" de alguma coisa em todos os lugares! Que temos uma concentração de renda e privilégios absurdos, que faz com que alguns pirões tenham camarão, coentro, legumes orgânicos e em outros nem água filtrada, sem dúvida temos.
O fascismo tem uma peculiaridade, algo de aniquilamento do outro, de um não pensar como já ensinou cansativamente Hannah Arendt (e parece que não aprendemos). Diante do holocausto ela dirige a palavra não para o nazista, mas para os rabinos "onde vocês estavam, o que vocês fizeram?".
O que talvez ocorra é que alguns fiéis fecharão estradas, trata-se, até agora, do movimento de alguns caminhoneiros, os mesmos que protestaram contra a alta de combustível e pararam outras vezes.
Atravesso um caminhão numa rodovia e paro um país continental sem malha ferroviária, simples assim, um ato de um homem só. Os caminhões não sairão, latifundiários não farão a colheita. Cada um usa as armas que tem para lidar com suas frustrações. Tipo criança mimada que quebra o próprio brinquedo, Bolsonaro foi dormir. Se está a arquitetar um golpe? Duvido, mas como muitos irá se isentar, silenciar. Deixa o circo pegar fogo. Isso agradará a todos. Todos terão uma parcela de razão e as convicções estarão preservadas. É o desfecho perfeito.
"Me esqueçam", disse o general Figueiredo depois de mais de 30 anos de ditadura no Brasil. "Me deixem dormir", falou Bolsonaro que no último debate cometeu o ato falho de pedir a reeleição para deputado federal. Um ato falho é sempre um ato bem-sucedido.
"Farinha pouca, meu pirão primeiro" proferiu um colega meu, anos atrás, professor de uma universidade estadual do sul do Brasil, diante da escassa carga horária.
"Precisamos esquecer o Brasil", diz a última estrofe do poema "Hino Nacional" de Carlos Drummond de Andrade:
"Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado, ele quer repousar de nossos terríveis carinhos. O Brasil não nos quer! Está farto de nós! Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?"
O Brasil está cansado. O que acontecerá se não tivermos um golpe, quebradeira, morte e sangue nas ruas? Descobriremos que não somos tão violentos, que somos mais civilizados do que disseram, que estamos cansados talvez de sermos mutuamente ofendidos. Cada um se manifesta como pode. Se meu messias não foi reeleito eu vou dar um jeito nisso. Vou quebrar meus próprios brinquedos, vou pôr fogo na lavoura, vou fechar a estrada que me dá alimento.
Somos um país de crentes, cremos que temos razão, cremos que o outro é mau, cremos que sabemos de amor e de ódio, cremos e queremos crer, inclusive, que vamos sofrer por sermos bons e estarmos do lado certo da história, cremos que entendemos de economia e política. Ah, como somos ingénuos. A história nunca tem apenas dois lados, é um fractal em movimento. Somos, a bem da verdade, cúmplices. De tanto afirmar ser o outro alguma coisa ele se torna. A palavra nos moldas. Quanta frustração será vermos que não somos uma sociedade fascista. Para onde irá esse gozo todo de sofrimento e certezas? O circo precisa incendiar, ao menos um pouco. Como assim, acabou tudo numa eleição? Não, não pode. Queremos mais. Até porque se meus inimigos não existirem desaparecerem quem sou eu?
Todos querem o Brasil, querem para si. Porque o Brasil segue fornecendo e garantindo prazeres e conforto ao mundo e a uns poucos mais que a outros tantos, uma corte de privilégios que, quando se esgotam as poltronas de veludo cotelê, sobram ideias sobre como as coisas devem ser. Esqueçam o Brasil!
Sim, várias rodovias estão fechadas, fiéis seguidores de uma narrativa cujo próprio titular não reconhece autoria, afinal, ele quer voltar a ser deputado federal, afinal ele foi dormir, afinal não precisa se manifestar porque vários outros fazem por ele.
O que eu sei do Brasil? Muito pouco, além do que me contam as pessoas que moram em Altamira, no Extremo Sul e no extremo Norte e no Nordeste. O que eu sei de economia? Que não consigo dar conta dos meus gastos sem comprar coisas parceladas no cartão. E o quanto é difícil abrir mão de algo para deixar o orçamento equilibrado. E sei que mesmo que trabalhe muito há um desequilíbrio nessa conta que não depende apenas da minha habilidade de gestão porque, afinal, os meios de produção estão nas mãos de meia dúzia, mesmo sabendo que nem existem mais os meios de produção como professaram Marx e Engels... O fato é: não atualizamos a cartilha, logo nossas análises e alternativas estão igualmente míopes. O que eu sei de violência e abuso? O que vivi, o que estudei e o que me ensinaram as mulheres com quem trabalhei por anos. Pouco sei, portanto.
O que deveria saber? Prestar atenção e ter a perceção de ser o outro a me ajudar a perceber algo que me foge e fugira da vista. É saber que nenhuma narrativa é ilesa de contradições. O fascismo brasileiro respeitará as eleições e essa contradição radical provara que vários estavam errados, mas queremos estar certos, então um pouco de caos é bem-vindo. O presidente atual foi dormir, o presidente eleito dançou rejuvenescido ao lado de Janja, seu amor-potência. O amor parece salvar, mas ainda não sabemos o que ele significa porque estamos presos demais nas nossas convicções.
E como cantou Jards Macalé, em 1972, na música Farinha do Desprezo.
"Já comi muito da farinha do desprezo,
Não, não me diga mais que é cedo,
Hum, quanto tempo amor, quanto tempo tava pronta,
Que tava pronta da farinha do despejo.
Já comi muito da farinha do desprezo.
Não, não me diga mais que é cedo,
Hum, quanto tempo amor, quanto tempo tava pronta,
Que tava pronta da farinha do despejo.
Me jogue fora que na água do balde eu vou m'embora.
Só vou comer agora da farinha do desejo,
Alimentar minha fome pra que eu nunca me esqueça,
Ah como é forte o gosto da farinha do desprezo,
Só vou comer agora da farinha do desejo.
Mas o que eu sei? Pouco sei, por isso desconfio das minhas certezas, mas "creio" que "o Brasil está farto de nós."
Psicanalista e escritora, doutora em ciências humanas