Espertinhos e espertalhões, uni-vos!
Anda um espectro por Portugal: o espectro de um reformado estrangeiro isento de impostos. Todos os jornalistas da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro. Sobretudo os jornalistas italianos que, desde há pouco mais de um ano, descobriram e, por sua vez, incrementam o êxodo de reformados que escolhem Portugal como residência fiscal. O objetivo destes emigrantes do descanso é receber o valor bruto da reforma, enquanto residentes no estrangeiro, gozando ao mesmo tempo do estatuto de "residente não habitual" em Portugal onde, de acordo com uma lei de 2009, ficam isentos de pagar impostos durante dez anos.
Quando os primeiros jornalistas começaram a vir entrevistar reformados, o fenómeno ainda era limitado a umas dezenas de pioneiros. Um frenesim de telefonemas entre colegas avisava a rede de informadores locais de que havia mais um repórter, ou mais do que um no mesmo dia, à solta por Lisboa à procura dos poucos que aceitavam falar. Às vezes era só mesmo um, e acabavam por cercá-lo. O homem ficava nervoso de tantos cafés que lhe pagavam enquanto dava entrevistas em cadeia, como as estrelas de cinema em dia de estreia. De facto, estas pessoas normalmente não gostam de contar o que fazem aqui, porque passam por evasores fiscais quando, no fundo, apenas aproveitam uma falha (não casual, é certo) entre dois sistemas que procuram evitar a tributação dupla. Nem todos arranjam residências fictícias. Pelo contrário, instalam-se e criam laços, amizades, afetos. Um Erasmus da terceira idade.
No entanto, em Itália, o nível de alarme tem vindo discretamente a subir. Apesar de essa disparidade de tratamento não ser nada simpática, é importante perceber que a primeira vítima é a segurança social do país de origem. Os reformados italianos no estrangeiro mais do que duplicaram desde 2010 e as transferências já ultrapassam os mil milhões de euros. Oriundos de um país onde uma reforma média tem mais de 30% de retenção de IRS, dependendo do escalão, sempre que um deles apanha um voo low cost para cá, apanha também o elevador social. O seu dinheiro vem movimentar os consumos internos de Portugal, desde o setor imobiliário ao hoteleiro (casas, copos e mulheres, é sabido, são a obsessão dos povos do Sul, embora não haja dados oficiais sobre o consumo de sexo, pois o único que legalizou esse mercado é o país do Sr. Dijsselbloem).
É verdade que surripiar ex-operários, lojistas ou bancários aos parceiros UE é só uma das jogadas no xadrez da política fiscal continental; pouca coisa se a compararmos com a deslocalização das grandes firmas para a Holanda ou a fuga de capitais para as offshores. São os paradoxos da desunião europeia, que a Itália conhece desde o tempo em que um salto do Ducado de Milão até à República de Veneza podia dar bons benefícios fiscais. À falta de uma UE coerente, a consciência de que nem sempre as vítimas somos nós talvez resulte perversamente benéfica para a criação de um simulacro de espírito comum europeu. Um europeísmo inspirado já não na utopia dos pais fundadores (os do Tratado de Roma que acabamos de comemorar), mas sim no efeito consolatório da batota bem-sucedida. O euroceticismo mitigado pela noção de que os lesados podem ser os parceiros da porta ao lado e a nós também nos cabe o papel de espertinhos.
Sabendo, porém, que os espertalhões contra-atacam. Enquanto Portugal subtrai elementos à classe média alheia (a camada que falta nas sociedades polarizadas entre poucos ricos e muitos pobres ou semipobres), a Itália lança agora a flat tax, um imposto único para multimilionários que, mudando-se para lá, deixam nos cofres do fisco local uma gorjeta de 100 mil euros. Para um Bill Gates, diz quem já fez as contas, corresponde a uma percentagem igual a zero-vírgula-muitos-zeros-e-qualquer-coisinha por cento do património.
"A maior desgraça de uma nação pobre é que, em vez de produzir riqueza, produz ricos", disse Mia Couto, da longínqua África. Na velha Europa, onde já nem se consegue produzi-los, acaba-se por importá-los.
Jornalista freelance, colaborador da Qcodemag