"Espero não ter de andar aos 70 anos com uma Kalash na mão"
No táxi, a caminho da Benard ao Chiado, as palavras da Rita, amiga e camarada calejada em entrevistas daquelas que fazem suar, martelam-me a cabeça. O aviso é feito dias antes, poucos, do pequeno-almoço combinado há uma semana: "É um gajo do caraças mas muito difícil de agarrar pela conversa. Está sempre à defesa." Arrependi--me então várias vezes de lhe ter contado da entrevista ao Miguel Guilherme. Dispensava bem ir trabalhar com tremuras próprias de estagiário.
Quase a chegar à Baixa, o telefone avisa-me que o Evaristo, o Anastácio, o judeu de Grumberg e o chef Luís Noronha da novela da SIC, que não vejo por snobismo - tantas peles ao mesmo tempo para um só corpo - estão à minha espera. "Olá, é o Miguel. Já cá estou. Ficamos na esplanada que o frio ainda se suporta." Nem três minutos depois uma mensagem escrita para dizer que "afinal, fui lá para dentro". Seja.
Entro na pastelaria e os olhos levam-me até à mesa onde havemos de beber quatro cafés, comer uma madalena com passas e uma bola-de-berlim a transbordar de creme e desfiar mais de uma hora de conversa, entrecortada pelos telefonemas de Sandra Faria, a produtora que lhe vai fazendo a ressaca das emoções das últimas 48 horas. É sexta-feira, dia seguinte à estreia do remake do Leão da Estrela. Desta vez o ator falhou a passadeira vermelha do CCB porque estava no palco que divide com Bruno Nogueira, no Casino Estoril, para o segundo dia da peça O Meu Vizinho É Judeu, que há de estar em cena até final de janeiro.
A primeira pergunta é óbvia e nada original, mas não deixa de lhe causar desconforto e reação. Como é que é esta coisa de ser visto como uma espécie de herdeiro do António Silva? "Tem de se desdramatizar essa coisa de eu ser o herdeiro do António Silva, na medida em que isso não existe. Eu não tenho nada que ver com o António Silva, nem na maneira de ver o mundo nem em termos de carreira. Isso não quer dizer que não goste muito do António Silva, sobretudo dos filmes. Porque nunca o vi em teatro - quando ele morreu eu era criança. E tenho pena de não o ter visto em teatro, porque gostava de o ter feito. O que fiz foi o remake ou adaptação de dois daqueles três filmes da chamada "era de ouro da comédia portuguesa", que foram cinco filmes ou seis e que depois descambou completamente. Mas tenho muito mais que ver com o António Silva do que meia dúzia de criticoides que falam sobre isso. Disso tenho a certeza. Ou seja, o António Silva, se não gostasse daquilo que faço, quando muito, dava-me um puxão de orelhas e eu dava-lhe um murro a seguir e depois, provavelmente, íamos conversar os dois. Com estes tipos, que entram no insulto e na manipulação grosseira - como ainda hoje [27 de novembro], no Público -, não há qualquer tipo de diálogo possível. E eles próprios, que odeiam o António Silva, que sempre odiaram a comédia portuguesa, vêm agora com pezinhos de lã falar da comédia portuguesa quando a odiaram sempre e sempre odiaram aqueles filmes." O texto do Público que ficou cravado na garganta de Miguel Guilherme como uma espinha foi uma crítica de Jorge Mourinha publicada no caderno Ípsilon sob o título "Para quem é, bacalhau basta" e onde o novo Leão da Estrela é descrito como um filme de "descabelado oportunismo" que enferma de "labreguice demagógica" e que ilustra "o triunfo da mediocridade". Agitado na cadeira com o rumo que tento imprimir à conversa sentindo o cheiro a sangue, Miguel propõe-me que mudemos de assunto porque "senão isto vai descambar e eu gostava de ter uma conversa positiva contigo e não uma conversa negativa".
Porém, mais adiante, é o próprio quem não resiste a mais uma alfinetada ao crítico de cinema a propósito da participação no filme O Agente Secreto - adaptação ao Verão Quente de 1975 do livro de Joseph Conrad com o mesmo nome - que integra a exposição do artista plástico canadiano Stan Douglas no Museu Berardo. "Fiz uma coisa para o Stan Douglas - agora vou puxar aqui dos galões - que é um dos maiores artistas plásticos do mundo. E trabalhei com o Stan Douglas e as pessoas podem ir ver. Jorge Mourinha, podes ir ver que eu também sei quem é o Stan Douglas. Mais do que tu! E fiz uma peça lindíssima dele com mais alguns atores portugueses, ingleses e americanos, toda falada em inglês. Os atores portugueses são muito versáteis, aprendem línguas muito rápido." Feita a catarse e exibido o orgulho ferido, seguimos em frente.
E como é que se reconstroem personagens que foram tão marcantes como o Evaristo ou o Anastácio? "Foi difícil no sentido de procurar ser honesto e ter graça. Ter graça é difícil, porque tens de estar muito livre, muito solto. E umas vezes acertas e outras não. Abordei os dois filmes de maneira diferente porque são ambos muito diferentes: um, O Pátio das Cantigas, é uma orquestra sinfónica; o outro, o Leão da Estrela, é uma orquestra de câmara. Só isso marca a diferença na maneira de representar. E, sinceramente, diverti--me."
Da Comuna a Brecht
O gozo de representar aos 57 anos é a deixa certa para falar da carreira longa que começou na Comuna com um papel de substituição na peça Homem Morto, Homem Posto de Brecht, e das inevitáveis crises existenciais que afligem quem se move nas tábuas dos teatros ou nos sets de filmagem de cinema ou televisão. "Às vezes penso "e se eu deixar de gostar?" Mas acho pouco provável. Porque o que acontece é que há alturas em que odeio fazer isto. É como nos amores, é como em tudo. Tu deves ter a mesma coisa na tua vida: "Não posso mais com isto!", e depois volto a estar apaixonado." Os olhos brilham numa expressão quase infantil da paixão pelo palco. "O teatro é a minha base. Se agora me disserem assim "você pode fazer tudo mas teatro não", então arrumo as botas e vou-me embora, porque sem teatro não sei funcionar. Portanto, o teatro é a base e diria que, a seguir, é o cinema. Embora a televisão me tenha dado muitas alegrias." Não tem ídolos nem referências, antes atores e atrizes por quem se enamorou em determinados momentos da vida. O exemplo maior é Marlon Brando, de quem diz ter sido o grande revolucionário da arte de representar. Em Portugal filmou com vários realizadores, mas foi com Manoel de Oliveira "que me senti plenamente realizado. Quando trabalhava para o Manoel de Oliveira eu queria agradar àquele homem, queria fazer bem para aquele homem. E não era pelo respeitinho ao Manoel de Oliveira. Era pela maneira como ele era no plateau, pela maneira como ele trabalhava, pela maneira prática. Uma vez estávamos a fazer uma cena e eu fiz o primeiro take e acho que foi o câmara ou alguém que falhou e ele disse: "Você não percebe que este ator é bom ao primeiro take!? E que no resto depois já não é tão bom!?" Eh pá, e quando ouves alguém dizer isto percebes: "Espera aí, este tipo não anda a dormir." E foi a primeira vez que eu senti que se estava a fazer cinema."
A sala do teatro do Casino Estoril tem-se enchido para assistir à peça O Meu Vizinho É Judeu, do dramaturgo, ator e alfaiate francês Jean-Claude Grumberg, com Miguel Guilherme e Bruno Nogueira e encenada por Beatriz Batarda. Narra a história de dois tipos, um é judeu e o outro não, que se encontram no hall de entrada de um prédio e se confrontam em nove situações distintas. "Há atores com quem temos uma química muito grande. E eu, além de ter química com o Bruno, sou muito amigo dele. E depois, também, ele é muito mais novo do que eu e, para mim, é uma lufada de ar fresco trabalhar com pessoas mais novas." Entretanto, o telemóvel pousado em cima da mesa continua a tocar com uma teimosia danada, mas Miguel Guilherme já não atende. Concede-me a primazia da conversa.
Resistir com humor
A Europa ainda está a ressacar dos atentados de Paris no Bataclan e no Boulevard Voltaire. Miguel está pessimista. "Não sei explicar o que é que senti. Primeiro foi raiva. E depois recuei um bocadinho e pensei que alguma coisa vai ter de mudar. Porque o que está a dar cabo de nós é o nosso remorso como sociedade ocidental. Nós fizemos muita merda ao longo da história e, então, estamos cheios de remorsos. Eles não têm remorsos. E o que vai dar cabo de nós é isso. Estamos a acabar. Nós vamos acabar mais cedo do que as pessoas imaginam. Espero não ter de andar aos 70 anos com uma Kalash na mão. Vivi sempre a minha vida em paz e gostava de a acabar assim, em paz. Mas não tenho a certeza se isso vai acontecer. Parece que os dados estão a ser lançados e tenho a sensação de que se está aqui a juntar um caldinho - independentemente de quem é bom e quem é mau - que me dá a sensação de que isto vai rebentar ou implodir em vários sítios. Há uma coisa que estes tipos querem que é impor o terror. E a minha missão, a missão por exemplo de um cómico, é não deixar que eles nos tirem a capacidade de rir, de acharmos graça às coisas. Porque sejam os ayatollahs e o islão, seja o Hitler seja o Estaline, são tudo tipos para quem o sentido de humor é algo absolutamente perigoso e que não querem que exista. Para um judeu, para um católico é diferente. Eu sou católico e oiço piadas sobre Jesus Cristo todos os dias, algumas das quais bastante hardcore e não me passa pela cabeça ir cortar a cabeça das pessoas que as fazem. Umas até têm imensa graça, diga-se de passagem. Portanto, nós vivemos numa sociedade, de certa maneira, livre onde nos podemos rir, onde podemos criticar, onde ninguém te vai cortar a cabeça, as mãos, os pés e a língua, nem atirar os homossexuais do cimo das torres. Não sou perito, mas acho que alguma coisa tem de mudar. Não sei se a solução passa por bombardear a Síria massivamente, não tenho a certeza. Mas vamos ter de, provavelmente, ser mais securitários." Apesar de recear que as fronteiras tenham de ser fechadas e que o acordo de Schengen "vá à vida", diz que a resistência a esta forma de fascismo passa por manter a atitude de "calma e gentileza incríveis" que a Europa tem tido. "O que o Daesh quer é, obviamente, uma radicalização das posições. Ainda ninguém incendiou mesquitas, que é o que eles querem."
E sobre os refugiados e o preconceito que começa a fazer caminho por causa do medo? "Essas pessoas têm direito a ser reconhecidas como refugiados de guerra e a ter asilo. Só querem viver. Não querem mais do que isso. Há quem argumente que vêm terroristas entre eles. Sim, virão alguns. Mas a maior parte deles já cá estão, porque há uma radicalização de jovens muçulmanos europeus e isso é que é preciso conter."
Católico e liberal
Miguel define-se política e ideologicamente como de esquerda moderada. "Sou católico mas sou muito liberal. Por exemplo, sou completamente a favor da legalização da prostituição, sou a favor da legalização das drogas duras, sou a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, sou a favor da adoção plena e do casamento dos homossexuais. Sou portanto absolutamente liberal nas questões sociais, não digo no plano económico. Mas tudo isto só é possível numa sociedade capitalista ou numa sociedade burguesa, porque numa sociedade concentracionária nada disto é possível. E só é possível porque a sociedade capitalista é, basicamente, uma sociedade onde a mercadoria, os bens - e não tem a ver com a globalização - têm de se movimentar: os capitais, o dinheiro, os bens materiais. E as ideias movimentam-se também. Numa sociedade concentracionária, em que não há importação, em que, portanto, tudo é mais cerrado, as ideias também são fechadas a cadeado. A sociedade capitalista é mais aberta porque precisa de expandir a sua mercadoria. E ao expandir a sua mercadoria, ao deixar que a mercadoria se expanda, as ideias expandem-se juntamente com elas."
A conversa chega ao fim. Despedimo-nos com o Miguel a desafiar-me insistentemente para ir vê-lo ao Casino com uma humildade comovente para quem é, indiscutivelmente, um dos melhores atores da sua geração. Já sozinho, regresso às palavras que me azucrinavam os nervos antes deste encontro e confirmo aquilo que a minha amiga me tinha dito. O Miguel Guilherme é mesmo um gajo do caraças.
Pequeno-almoço
Pastelaria Benard
› 4 cafés
› 1 madalena
› 1 bola-de-Berlim
› 2 águas
Total: 13,15 euros