Espaço para a dúvida
A discussão política sobre a eutanásia parece fazer acreditar que se trata de tema simples, sem grande complexidade, uma simples questão de lógica. De um lado ou do outro, ela aparece sempre envolta em certezas absolutas, juízos muito rigorosos sobre o porque sim ou o porque não - uma questão civilizacional que não consente hesitações ou meio-termo. E onde há certezas absolutas não se permite dissensão, e é por isso que as certezas absolutas são tão perniciosas numa democracia.
Mas se sairmos do debate político, onde políticos e activistas expõem as suas certezas, e olharmos à nossa volta e falarmos com as pessoas com que nos cruzamos, logo percebemos que há uma infinidade de posições e predisposições e hesitações sobre o tema.
Mesmo quem tem posição definida tem dúvidas. Mesmo quem sabe como votaria consente inquietações. Poucos serão aqueles que não se projectam nessa situação de sofrimento insuportável, nesse medo e nessa angústia. Como não ter dúvidas?
Mais do que isso, mesmo quem pensa de uma maneira e tem posição definida e até definitiva sobre o tema trabalha e ama e convive e gosta de pessoas que pensam de forma distinta, não lhes reconhecendo qualquer inferioridade moral, qualquer desvio, por não partilharem da mesma posição. Há uma natural predisposição para o outro, a consciência de que o outro lado, a outra posição, não é inaceitável, não provém de uma conspiração, não está ao serviço de um qualquer mal.
Nesse sentido, a exibição de certezas absolutas no debate político, a afirmação de uma superioridade moral sobre o outro lado (seja porque relativiza a vida humana seja porque não consente a liberdade - para usar dois argumentos correntes), como que esbarra na natureza humana, bem mais contraditória e bem mais disponível para o outro do que os dogmatismos políticos suspeitam.
É por isso que a afirmação de certezas absolutas nestes temas, como se fossem moralmente as únicas respostas possíveis, tem como efeito afastar as pessoas, fazê-las sentir-se desconfortáveis, até mesmo acusadas - actores secundários de um debate em que não querem participar porque não entendem os pressupostos da discussão, como se em tudo tivesse de haver o bem e o mal, os bons e os maus.
Sempre que sou chamado a participar neste tema, defendendo a minha posição contra a eutanásia, procuro (e espero conseguir), afastar a certeza e a superioridade moral, confiando convencer as pessoas pelos argumentos e não pelos juízos de valor, concedendo dúvidas e compreendendo medos.
Há quem me chame de ingénuo por achar que o debate político deve ter em conta essa natureza humana e abrir espaço para a dúvida, mas não creio que se trate de ingenuidade, antes de empatia. É verdade que as pessoas querem sentir liderança e firmeza e confiança; mas querem senti-las em quem as compreende e não em quem as acusa.
Advogado. Escreve de acordo com a antiga ortografia