Esgotada a água benta

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Esgotada a água benta dos últimos dias, vivemos o tempo mais quente e seco desde que há registos e também escasseia a água propriamente dita: a que bebemos e a que consumimos na rega, na indústria e no banho.

A água é a mais antiga das nossas memórias, e quanta desperdiçamos! Lembro o meu avô, Francisco, no tempo em que as férias me devolviam à aldeia, e a falta de água já era uma das faces da invariável injustiça do mundo. Todas as noites, depois de dar de comer ao gado e antes de se deitar, o velho endireitava-se no curral para olhar o céu, encontrar sinais de uma chuva que raramente vinha quando mais falta fazia. E quando ela finalmente caía, mansa e copiosa sobre a horta, era ouvi-lo murmurar: "Bendita água, louvado seja Deus!"

A água era um prodígio imprevisível. Caía do céu ou brotava do interior obscuro da terra, mesmo da própria rocha, como num milagre bíblico, de poços e nascentes que se regiam pelas suas próprias leis secretas. A água era a divindade cruel, que tanto podia abençoar o esforço do trabalho quanto arrasá-lo. E havia fontes muito celebradas pela limpidez e pureza das suas águas, em áreas arborizadas, frescas no verão, onde o gentio guardava a sua vez para encher os cântaros.

A água para rega e para consumo era administrada segundo técnicas ancestrais, transmitidas desde a antiga Mesopotâmia e aperfeiçoadas depois pela ocupação mourisca: desde a picota e da nora, às levadas e açudes - engenhos tão eficientes na sua simplicidade, como no desenho dos cântaros que se levavam para casa antes da chegada da água da rede pública, que nas nossas aldeias só se generalizou no final dos Anos 70 do século passado. Foi nessa época que vi pela primeira vez uma piscina no seu luxuoso azul. Esse azul de cloro que me surpreendeu tanto, quanto a facilidade dos ociosos que nele nadavam agilmente e depois se deitavam ao sol, em vez de se abrigar dele, como nós, na minha aldeia.

Em poucas décadas, com o abandono do mundo rural, desleixámos antigas sabedorias. O mato substituiu antigas hortas de cultivo, e a floresta desordenada vai ardendo em alternância, deixando os solos sem capacidade para reter humidade e à mercê da erosão, enquanto o leito das nossas ribeiras é tomado de vegetação que potencia as cheias e inundações quando vem a tempestade. Há pelo menos duas gerações que desgovernamos um dos nossos principais recursos. Em pouco tempo desapareceu aquela severa economia da água, e também a reverência perante ela. A variedade de culturas de sequeiro - cereais, olivais, vinhas - está a dar lugar a culturas de regadio intensivo, que exigem grandes quantidades de fertilizantes químicos e pesticidas. Aqui e acolá, onde antes se cultivava, há hoje muita construção ilegal e extensões de prados relvados que consomem muito mais água do que a colheita perdida de hortaliças e árvores de fruto. Os aquíferos vão-se esgotando, tal como o fio de água corrente das famosas fontes para onde peregrinávamos como a modestos santuários pagãos.

É claro que ninguém que antes tenha conhecido, por dentro ou de perto, a dureza da vida quer voltar a ela. Mas há lições que precisam ser aprendidas, agora que a aceleração da mudança climática está a arruinar a miragem da abundância ilimitada em todos os lugares: a imemorial consciência da medida e dos limites, a gratidão para com os dons da natureza, os essenciais, aqueles que não se recuperam se se perderem - a água e o ar, que por tantos anos deixámos desperdiçar e envenenar pela ganância de alguns e pela negligência de quase todos. Entre secas mais severas e inundações catastróficas, está aí a emergência climática e, diante dela, de toalha estendida, há todo um mar que separa os profetas dos carapaus de corrida.

Jornalista

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