Escutar
"1, 2, 3, testando o som, 1, 2, 3, testando o som...", ficou na minha memória esta melopeia minimal e circular, dita pelo Kalaf no escuro do teatro, todos os dias antes do espetáculo Conspiração, que fizemos há uns anos.
Era, ao mesmo tempo, um teste de som do microfone, um momento de escuta, e um mantra de concentração.
Quando preciso de testar o som de um microfone antes de fazer uma intervenção ou uma atuação, ainda hoje o repito, fazendo variações modulares da voz.
Sempre gostei muito de ouvir aqueles momentos em que os músicos afinam os instrumentos, mesmo antes de o concerto começar.
Conta-se a história de que uma vez as pessoas num concerto aplaudiram entusiasticamente Ravi Shankar e o seu grupo de músicos, e que ele terá dito: "Já que gostaram tanto da afinação dos instrumentos, tenho a certeza de que vão adorar as músicas." Eu poderia ter sido uma dessas pessoas.
Adoro música e tenho uma frustração enorme por não ter talento musical nenhum. Eu bem tentei. Fiz uma banda e tudo, como todos os adolescentes, mas não adiantava. Inscrevi-me na Academia de Amadores de Música para aprender a tocar guitarra e andei um ano a bater com a cabeça contra a minha total falta de queda para a música.
Não me servia de nada invocar que nasci no exato dia em que os Beatles lançaram o seu primeiro single, Love Me Do. Eu bem pedia à música que me amasse, mas o amor não era correspondido. E à minha volta só via malta a tocar os hits da época e a improvisar como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Sentia-me como o Steve Martin naquele filme The Jerk, em que ele era o único branco numa família de negros que cantavam e dançavam com toda a facilidade e ele bem tentava fazer como eles, mas simplesmente não era capaz.
Tal como o idiota do filme, apanhei boleia para tentar a sorte noutra arte e acabei por ficar com os meus poemas e as minhas prosas, pálida imitação da música, cheios de significados e sentidos, mas incapazes de fazer dançar quem quer que seja.
Porém, nessa altura, tomei uma decisão: tornar-me-ia um grande ouvinte. E cumpri.
Ouvia todo o tipo de música e, com o tempo, fui-me dedicando mais a uns géneros do que a outros. Mas nunca deixei de querer experimentar ouvir coisas novas. E de ouvir doutra maneira.
Uma das experiências mais marcantes de que me lembro foi quando tive a ideia de organizar uns recitais no Jardim Botânico de Lisboa, os Noturnos.
Foi no início dos anos 1990, em pleno verão (fizemos três edições, com a autorização algo preocupada do grande guardião do jardim, o professor Fernando Catarino).
Os visitantes desciam o jardim à noite, orientados por guias com lanternas, e iam encontrando pelo meio das árvores atores a ler poemas, personagens a dizer falas de peças, bailarinos a dançar e músicos a tocar. Depois tudo convergia para o lago onde todos voltavam a aparecer, e o que antes era visto como uma exposição era então visto como um espetáculo.
Era mágico aquele improviso orgânico de todos os intervenientes naquelas noites quentes de verão - pelo meio daquele jardim de cheiros de mil e uma espécies vegetais, ouvir as vozes e as músicas misturadas com o som da água corrente e dos animais, os sapos do lago e os pássaros alvoroçados por aquela inesperada invasão.
O que eu gostei mais foi de poder deambular pela escuridão do jardim e sentir essa experiência irrepetível de mistura dos sentidos - o do olfato, mas sobretudo o da audição.
Foi nesse tempo que comecei a interessar-me não só pela música, mas também pelo som. A minha fase 4"33", quando conheci e comecei a admirar o pensamento de John Cage.
Lembro-me de ter visitado a câmara anecoica no Instituto Superior Técnico, uma sala onde não se ouve fontes externas de ruído e a reflexão do som que produzimos é eliminada ao máximo. Chegamos a poder ouvir o som do nosso coração e do sangue a circular nas veias.
O sentido da audição é uma dimensão que não tem sido valorizada, sempre tapada pela dominação do que é visual e, sobretudo, pela indústria do audiovisual.
Há uns meses, o músico Ryuichi Sakamoto fez uma playlist para um restaurante que gostava de frequentar, mas cuja seleção musical o incomodava muito.
Uma reação que muitos partilham em relação a espaços que investem tudo na arquitetura e no design visual e absolutamente nada no design sonoro, que é frequentemente desleixado, contraditório, desastroso ou simplesmente inexistente.
Há muitos anos, Brian Eno desenvolveu o conceito de ambient music e, muitos anos antes dele, já Erik Satie falava, como provocação ou talvez não, da sua música como música para acompanhar as refeições ao som de talheres.
O exemplo de Sakamoto não é tanto o de criar música para restaurante, mas antes o de procurar uma seleção musical tão personalizada quanto o seu menu ou o seu ambiente espacial, um feng shui sonoro.
O que me incomoda não é só a permanente utilização da música sem qualquer sensibilidade artística ou urbana. É a própria massificação musical por todo o lado, em particular nas rádios. Numa fase da história do mundo em que podemos ouvir música extraordinária de todo o planeta, porque é que a esmagadora maioria das pessoas ouvem quase só sempre a mesma música, quase sempre não a melhor (para dizer o mínimo)?
E a rádio, num tempo de podcasts e de streaming, não tem aqui uma nova oportunidade para poder ser uma múltipla diversa e pessoal escuta do mundo?
Num dos Noturnos do Jardim Botânico havia uma personagem que deambulava pelo jardim com um gravador, auscultadores e microfone numa perche. Era a personagem Fonteségura, do conto As Visitações, de Vitório Káli. Fonteségura gravava os sons dos pássaros e depois ia para o seu estúdio decompor os sons, compará-los e procurar perceber o que queriam dizer.
Um dia, para seu absoluto espanto, descobre que no meio dos sons há uma voz feminina que no meio do bosque chama por quem a possa libertar de um feitiço imemorial.
Uma parábola sobre a escuta.
1, 2, 3, testando som. É tempo de escutarmos todos os sons do mundo.