Escuridão e a escolha do guia certo
1.
- «O que está à vista não precisa de candeia.»
- Diz o povo.
- Não faz sentido, de facto.
- E Vossa Excelência também não precisa de uma segunda candeia para dar a ver a primeira candeia.
- Sim, isso é um facto.
- A luz, antes de iluminar as coisas, ilumina-se a si própria. Dá-se a ver a si própria.
- Ora aí está.
- «Mais vale acender uma vela do que dizer mal da escuridão.»
- Ora aí está, de novo.
- Sete mil homens podem insultar a escuridão, é o que lhe digo.
- Sim, o número de pessoas capazes de insultar a escuridão é infinito. No entanto...
- No entanto...
- No entanto, basta um homem para acender uma vela.
- Mas deixe-me fazer-lhe uma pergunta.
- Sim.
- Cabem mais homens numa sala escura ou numa sala iluminada?
- Não faz sentido essa pergunta, parece-me.
- Faz sentido, sim. Numa sala escura temos sempre a sensação de que há menos gente do que numa sala iluminada.
- O escuro psicologicamente esconde mais. Física e psicologicamente. É isso?
- Nem sempre. Por exemplo, é mais fácil escondermos uma lâmpada iluminada no meio de cem outras lâmpadas iluminadas do que uma lâmpada iluminada no meio da escuridão.
- Ou seja?
- A escuridão serve para esconder muita coisa, mas não é boa para esconder a luz.
- Em suma, se alguém quiser esconder uma candeia não a deve esconder no meio de uma sala escura. Não é o local certo.
- O homem que quer esconder uma candeia num quarto sem luz - eis o bom título para falar de um homem desastrado ou distraído.
- O homem que queria esconder a luz num quarto escuro.
2.
- Um zarolho, Excelência, a quem - ainda para mais - impedem que caminhe. - Eis um erro: para impedir que ele avance, agarrar a perna ao zarolho em vez de lhe tapar o olho que falta.
- Mas um cego pode ainda assim correr.
- Um cego que corra não irá longe, parece-me.
- Repare então nisto: temos duas maneiras de impedir que alguém avance.
- Duas? - Duas: imobilizar as pernas ou imobilizar os olhos, torná-los inactivos. Se ele não vê, pode correr porque tem pernas, mas certamente não o vai fazer.
- Quem não vê não corre; quando muito, anda.
- Quem tropeça mais? Questão relevante. Aquele que não vê ou aquele que coxeia, que caminha com dificuldade?
- A resposta: depende.
- Outra questão: quem se engana mais no caminho - aquele que não vê ou aquele que coxeia?
- Aí é fácil. O coxo não se engana no caminho, chega apenas mais tarde.
- É verdade. - Se não tiveres pressa podes ter um coxo como guia.
- E se não te interessar para onde vais, podes ter um cego como guia.
- Para mim é indiferente se chego tarde ou cedo. Posso ter um guia coxo.
- Para mim é indiferente por onde e para onde vou. Posso, portanto, ter um guia cego.
- Para homens sem pressa, guias coxos. Para apáticos, guias cegos.
- Ora aí está.