"Escrevo em ambas as línguas- espanhol e inglês. Quando fico bloqueada numa, mudo para a outra"
Nasceu na Cidade do México, mudou-se para Madison, Wisconsin, e viveu na Costa Rica, Coreia do Sul, África do Sul. Quando lhe perguntam como é que se identifica, responde mexicana?
Sim, sem hesitação. Respondo mexicana, apesar de ter três nacionalidades. Mexicana, italiana e, muito recentemente, passei a ter passaporte americano. Tive uma filha americana, a minha filha de dois anos, e a partir desse momento decidi que tinha chegado a altura.
Tem mais filhos?
Sim, tenho outra menina. Que nasceu no México.
De facto o seu nome é totalmente italiano...
Completamente. Tenho um avô que emigrou nos anos 1920 de Itália para o México, numa altura em que ainda havia muita emigração italiana para a América Latina. Penso que é complicado para as novas gerações de europeus entenderem que houve uma altura em que as pessoas emigravam da Europa para Cuba, para a Argentina ou para o México. E não foi assim há tanto tempo.
Com essa história familiar e com a sua história de vida, o que a leva a responder imediatamente mexicana quando lhe perguntam como se identifica?
Porque quando vejo futebol é pela seleção do México que sinto um aperto no estômago [risos]. Na verdade eu não sou muito apegada a nacionalidades. Sinto-me em casa em muitos sítios e sinto-me em casa com as pessoas mais do que por estar numa determinada terra. Mas suponho que - apesar de não ter lá vivido durante muito tempo - o México é o maior imaginário de pátria que tenho. Tenho dificuldades em dizer isso dos EUA.
Apesar de viver lá há muitos anos...
Sim, apesar de ter lá vivido toda a minha vida adulta e de as minhas filhas, uma ter crescido lá e a outra ter lá nascido. É uma nacionalidade mais complicada.
Já voltamos a essa questão da nacionalidade americana. Mas antes, só falar um pouco de um dos seus últimos projetos. Trabalhou numa performance com a poetisa Natalie Diaz sobre encarceração em massa e violência contra as mulheres. A arte é importante para chamar a atenção, de uma forma diferente, para questões difíceis como estas?
Sim, acho que sim. Por vezes a forma como contactamos com grandes problemáticas nos media, quando lemos nos jornais sobre imigração, sobre destruição ambiental, ou sobre detenções em massa, não temos tempo para interiorizar as coisas e para nos preocuparmos com elas. Informamo-nos através dos jornais, esse sempre foi o seu objetivo. Mas o seu propósito não é o de ajudar as pessoas a empatizar ou interiorizar ou compreender profundamente. Essa é uma tarefa que cabe à arte. Esta dá-nos uma linguagem, uma perspetiva, um ponto de entrada para questões complicadas, através da beleza. Mesmo coisas horríveis podem ser-nos mostradas, se não através da beleza, pelo menos a através da complexidade. As artes fazem isso e mais nada o faz.
Foi intérprete para jovens migrantes da América Central que procuravam legalizar o seu estatuto nos EUA. O facto de ser mexicana, de também ter tido de pedir residência permanente, com as devidas diferenças para as histórias deles, foi importante para criarem uma ligação?
Não. Acho que o único aspeto em que isso ajudou foi que eu conhecia o processo legal bastante bem. Estudei-o muito também porque queria perceber o que estava a fazer como intérprete e não apenas fazer perguntas mecanicamente. Fiz vários cursos, várias sessões imersivas de dois dias com advogados especializados em imigração que estavam a preparar outros advogados para fazerem trabalho pro bono. Eu assistia às sessões e ia tirando notas. Até cheguei a pensar tirar um curso de Direito. Mas a minha família disse "Não! Vais condenar-nos à pobreza e vamos ter de esperar por ti mais cinco anos até terminares mais um curso. Pára de estudar e vai trabalhar". Eu tinha acabado de tirar o meu doutoramento na altura. Portanto, acho que ajudou eu vir de fora e ver o sistema como ele é. É um leviatã, é tão complicado, é obscuro, é um labirinto. Isso permitiu-me ser mais clara na minha interação com as pessoas, guiá-las melhor, por compreender o quão difícil é. Mas não acho que a empatia advenha de ter passado por uma experiência semelhante. Acho que todos os seres humanos são capazes de empatia, sem terem tido de passar pela mesma experiência. É a imaginação que nos permite conectar-nos com outros seres humanos dessa forma.
Essa experiência como intérprete voluntária para jovens migrantes esteve na base de dois dos seus livros. Um de não-ficção Tell Me How it Ends: an Essay in 40 Questions e um romance Lost Children Archives (Deserto Sonoro, editado em Portugal pela Bazarov). Depois do primeiro, sentiu que precisava de ficcionar as experiências daqueles jovens para a fazer chegar ao público?
Na verdade não foi bem assim. Cronologicamente, o que aconteceu foi que estava a tirar notas para um romance, mas não sabia ainda bem como é que o ia construir. E ao mesmo tempo estava a trabalhar como intérprete com os jovens em tribunal. O que aconteceu naturalmente para mim foi que quando voltava para casa, levava muitas histórias na cabeça. Portanto, sentava-me a traduzir aquelas histórias para uma forma ficcionada. O romance foi crescendo assim. Mas eu sentia que não queria ir naquela direção. Por isso parei de escrever o romance, porque percebi que não estava a fazer justiça à situação ao tentar ficcionalizá-la no corpo de um romance. E também não estava a fazer justiça ao romance ao forçá-lo a ser um testemunho político do presente. Parei então de escrever o romance e escrevi Tell Me How it Ends, que é um testemunho em forma de ensaio do que vi no tribunal. E quando terminei Tell Me How it Ends, voltei ao romance e pensei nele como ficção, com muito mais liberdade, já não como o meio para atingir um fim, não como um martelo político para bater nas cabeças das pessoas. Deixei-o respirar muito mais. Por isso o romance não é tanto sobre a crise migratória. Tem uma parte de crise migratória, como tem uma história de divórcio, como tem uma parte de crianças a imaginar o passado e a recriá-lo. Muito mais como a vida - com um pouco de tudo.
Há cerca de 11 milhões de imigrantes ilegais nos EUA. Uma situação que parece não ter uma solução política à vista. Falta vontade política para a resolver?
Eu acho que a solução para a maior parte destas pessoas - que viveram toda a sua vida adulta nos EUA e pagam impostos e ali criam os filhos - passaria por legalizá-las ou dar-lhes diretamente a nacionalidade. Houve alguns pequenos passos no passado para regularizar grupos de pessoas que já estão há muito tempo nos EUA, aconteceu em várias Administrações, repetidamente. A última vez foi com Barack Obama, que criou programas como o dreamers e o DACA. Mas há falta de vontade política. Há um excelente acordo bipartidário, que juntou propostas de democratas e republicanos no Dream Act. O objetivo era garantir que qualquer criança que seja trazida para os EUA sem documentos enquanto ainda é menor não seja penalizada. Cada Administração revê esta lei, vota e nunca chegam a nenhuma conclusão. Obama emitiu uma ordem executiva para implementar o Dream Act. Mas não durou muito, Trump reverteu-o. Por isso, sim, há falta de vontade política. Para mim é óbvio que estes 11 milhões de pessoas deviam ter direito a uma presença legal: eles vivem nos EUA, têm casas, pagam impostos, os seus filhos vão à escola.
Vive no Bronx com a sua família...
Sim, tenho uma casa no Bronx, mas não tenho lá vivido no último ano porque estou a dar aulas em Harvard. Por isso mudei-me para Cambridge, Massachusetts. Mas a minha morada permanente é no Bronx. E desde antes da covid, durante toda a pandemia e até agora, temos vivido na minha casa numa espécie de sistema matriarcal que funciona muito bem. Vivo com a minha mãe, a minha sobrinha, as minhas filhas e a minha cadela, Lola. Vivemos em grande harmonia, tirando algumas alturas do mês em que ficamos muito irritadas mas deixamo-nos em paz [risos].
Como mexicana a viver nos EUA, e agora que já tem a nacionalidade americana, como vê as próximas eleições, com a perspetiva de ver voltar ao poder alguém como Donald Trump que disse que os mexicanos eram todos "traficantes, criminosos e violadores"?
[Suspira] Preocupa-me profundamente. Fico espantada de haver sequer a possibilidade de ele voltar - como é que há tanta impunidade? Como é que ele não está preso? Infelizmente acho que há uma forte possibilidade de ele voltar e temos de nos preparar para essa possibilidade. Seria a pior notícia possível. Do ponto de vista político, mas também do ponto de vista ecológico, de qualquer ponto de vista. Até pelo precedente que criaria, para os EUA e para o resto do mundo. Há líderes populistas e autoritários destes um pouco por todo o mundo, que vão conseguindo levar as suas ideias por diante. É perigoso e assustador.
Sobretudo depois de já terem tido a experiência de quatro anos de Trump no poder...
Sim, tivemos essa experiência. E deixou marcas psicológicas em muitos de nós. Vivemos num estado de emergência durante quatro anos. Todos os dias acordávamos a desejar que não houvesse mais uma decisão terrível - uma mudança de política que devastasse as vidas das pessoas, uma lei de proteção ambiental que tinha sido anulada. É psicologicamente extenuante.
Mesmo num país tão dividido como os EUA estão neste momento, o sonho americano continua vivo? As pessoas ainda procuram o melting pot americano?
Eu diria que isso já não existe desde os anos 1950. A Guerra Fria acabou com essa ideia. Diria que os EUA são um país com muitas virtudes. Eu como insider/outsider, que vive lá há 15 anos, consigo ver as coisas maravilhosas que aquele país tem para oferecer. Sobretudo em termos de instituições universitárias. Não há muitos países no mundo com tantas universidades tão boas. O acesso a bibliotecas é infindável. Mas para além disso, não sei...
Mas as pessoas continuam a querer imigrar para os EUA. O que procuram então?
Não tenho bem a certeza. Além das universidades... E a educação é boa sobretudo porque o corpo docente é muito internacional, se fosse apenas local, não seria tão bom como é.
Viveu em vários países, apesar de se continuar a sentir mexicana, sente que os EUA oferecem aos imigrantes a possibilidade de se sentirem americanos mais facilmente do que outros países?
Sim, alimentam o mito da americanidade. Todo o discurso é muito nacionalista. E dirige-se muito a jovens desfavorecidos, fazendo-os acreditar que têm um dever de servir e defender o país, por exemplo, entrando para as forças armadas. Os EUA têm um discurso militarista muito forte, muito mais do que a maioria dos países. No outro dia estava a falar com um dos jovens de quem fui intérprete e ajudei a conseguir residência, hoje tem 20 e poucos anos e no próximo ano deve pedir a nacionalidade. Falámos e ele disse-me que tinha uma boa notícia: que ia entrar para o exército. Eu perguntei porquê? E ele respondeu que este país lhe deu muito e... que quer o uniforme! [risos] Mas fiquei a pensar: um jovem hondurenho, que chega a um país sem sentido de pertença, quando eventualmente surge a hipótese de fazer parte de algo, de ter um uniforme, vê aí a sua oportunidade. Podia entrar para um gangue ou entrar para um gangue maior, que é o exército - é um gangue legal.
O seu último livro Lost Children Archives foi o primeiro romance que escreveu em inglês, é muito diferente de escrever em espanhol?
Não muito. Escrevo muito em ambas as línguas. E sinto que quando fico bloqueada numa das línguas, muitas vezes o que faço é traduzir e mudar para a outra para avançar. É um avanço e recuo um pouco neurótico. Não posso fazer isto a toda a hora porque demora muito tempo. Quando escrevo ficção, normalmente não faço isto. Mas neste momento estou a trabalhar num livro de não-ficção que é uma espécie de continuação do Tell Me How it Ends e estou a escrevê-lo em ambas as línguas, ao mesmo tempo.
Pensa em inglês ou em espanhol?
Em ambas. Penso na língua em que estiver a falar.
No seu livro de ensaios Sidewalks escreveu sobre o conceito de saudade e conclui que "saudade talvez não seja saudade". Agora que está aqui em Portugal, já descobriu o que é a saudade?
Preciso de mais tempo [risos].
Porque decidiu escrever sobre "saudade"?
Sempre me interessei pelo sentimento de nostalgia, enquanto alguém que cresceu sempre como estrangeira, em todo o lado, mesmo no México sinto-me sempre um pouco estrangeira - ou talvez sobretudo no México, porque é suposto ser a minha casa, mas não é verdadeiramente. Portanto sempre vivi com este sentimento de nostalgia - nostalgia por outros lugares, por uma pátria. E comecei a sentir esta nostalgia muito cedo. Acho que as crianças sentem nostalgia. É um sentimento de adultos nas crianças. Outros sentimentos só surgem mais tarde na vida, mas acho que as crianças sentem nostalgia. Eu era uma criança muito feliz e muito rebeldes, mas também era nostálgica. Por isso quando me cruzei com o conceito de saudade fiquei muito interessada nas muitas coisas que contém.
Como é que se cruzou com o conceito de saudade?
Deve ter sido a ler. Devia estar a ler Fernando Pessoa, o Livro do Desassossego. E depois pesquisei mais e perguntei às pessoas sobre a saudade. Lembro-me de escrever o ensaio, nunca tinha vindo a Lisboa, e não havia Google Maps, na altura. Mas eu tinha um mapa de Lisboa, que devo ter comprado na Cidade do México e escrevi com o mapa à minha frente. Tenho uma imagem muito nítida dos nomes: Rua dos Douradores, Tabacaria. E agora pedi que me levassem à Baixa para os poder ver finalmente ao vivo [risos].
helena.r.tecedeiro@dn.pt