Escrevivências
É um termo inventado pela escritora Conceição Evaristo a partir da junção das palavras "escrever e vivência", mas cuja força está na vida da própria escritora, nas suas experiências étnica e de género. Em outras palavras é uma forma de responder e entender a pergunta "o que faz um escritor?".
Uma pergunta com dois sentidos por suposto. Via de regra há sempre mais de um sentido nas cousas. Isso explica ou justifica ser a comunicação um mistério. Ela precisa mais do que palavras e de uma gramática comum, ela precisa de um certo paladar, de gostos e sabores invadindo a língua e a pele. Precisa de café, vinho, música, silêncios, precisa de discussões incómodas e risadas, desconfortos e acolhimento e repetição, muita repetição, e de experiências compartilhadas. Aí, talvez, apenas talvez, em algum ponto perdido nesse emaranhado de sensações haja alguma convergência de percepções e laços se formem. Fora disso creio apenas inventarmos a realidade, o que torna, todo mundo em alguma medida, um escritor-roteirista da própria vida.
Perguntar o que faz um escritor é olhara as "escrevivências" para aquilo que o torna ator na sua arte. Essa, de costurar imagens-palavras e criar sentidos e mundos ou, apenas, tentar dar conta de si mesmo, mas também é querer saber dos hábitos e observar o quanto influenciam o processo criativo.
Annie Ernaux, Nobel de literatura de 2022, disse ao final do seu livro "O acontecimento" que as coisas acontecem com ela para ela as contar. E que o verdadeiro objetivo da sua vida é que o seu corpo, suas sensações e seus pensamentos se tornem escrita.
"Isto é algo inteligível e geral, minha experiência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros".
A fala de Annie me levou imediatamente ao termo de Conceição Evaristo. Tão distantes, tão próximas as duas escritoras.
Alguns escritores se definem fingidores, eu gosto também da ideia de serem gatunos, de furtar mesmo, frases e histórias dos outros e de si próprios e reinventar tudo, mentir, portanto, consciente ou inconscientemente.
Conversando com Rafael Gallo, último prémio Saramago, foi interessante perceber o quanto há este corpo que oferta estórias. O seu manuscrito premiado, agora livro "Dor fantasma", já disponível em Portugal e no Brasil, tem algo da suas próprias sensações e dores. Ele sabe disso e fala. O escritor, antes com sonhos de músico profissional, teve que fazer escolhas e se tornou servidor público. Nesse ato de amputar um desejo lhe nasce um livro. Um texto negado por diversas editoras brasileiras, mesmo sendo ele autor de "Rebentar", de 2015, romance vencedor do Prémio São Paulo, e de "Réveillon e outros dias", de 2012, livro de contos vencedor do Prémio Sesc. Parece não bastar ter prémios para se tornar um escritor ou um artista seja onde for, tampouco para ser publicado. A mim Gallo encantou ao fazer reverência a seus afetos, trazendo as importâncias que lhe acompanham nos seus processos, como a namorada e a música. Cantou e tocou improvisado na live que fizemos juntos, aceita por ele logo após o prémio, num gesto muito gentil.
Gallo foi premiado na edição que trouxe mudanças ao prémio Saramago. Ao trocar emails com alguns responsáveis pelo prêmio - e aqui um agradecimento a atenção de Guilhermina Gomes, Presidente do Júri na edição de Gallo, e Rui Coceiro -, para entender a mudança de critérios, foi interessante perceber a coerência em aumentar a idade-limite fazendo jus à própria historia de Saramago, um escritor que começou a publicar tarde, sem financiamento para escrever, e cuja obra foi reconhecida depois dos 40 anos do autor.
Outra mudança importante foi o anonimato. Até então, premiavam livros já publicados. Talvez a escolha atual seja uma forma de garantir uma leitura mais isenta, tal qual a Iustitutia, a deusa romana da justiça, com seus olhos vendados. Digo isso porque Diké, a grega, os arregala com sua espada em punho. Mas sobre isso falaremos outro dia.
No contexto de entender mais do prémio Saramago pensei nas premiações e seleções em geral. Admito que ainda me perturba um questionamento: no mundo dos prémios, se as bancas são majoritariamente de homens ou um perfil, não são elas mesmas os olhos de alguém?
Recentemente no Brasil houve uma discussão sobre serem todos brancos os jurados do Grupo Especial das escolas de Samba do Rio de Janeiro e o impacto disso no resultado. Voltando a literatura, dos 12 prémios Saramago até hoje concedidos, apenas dois foram para mulheres, ambas brasileiras, Adriana Lisboa, 2003, com Sinfonia em Branco, e Andrea Del Fuego, 2011, com o romance Os Malaquias. Das 20 edições de outro prémio importante, o Oceanos, há apenas quatro primeiros lugares mulheres.
Pensando nesta justiça de olhos vendados e no quanto as diferenças de género (e as outras tantas) colaboram para o quadro de formação de escritoras e da literatura, e o quanto a maternidade e exigências sociais e realidades diversas fazem as mulheres escreverem mais tarde, menos, em uma temporalidade singular, ou com um linguagem especifica... repito a pergunta: não seriam as bancas elas mesmas o gosto e os olhos de alguém? O anonimato basta sem um júri diversos? Não há aí um paladar especifico, excelente sem sombra de dúvidas, mas específico? Levando, quase naturalmente, às editoras a publicarem mais homens e mais brancos...
O fato é que os prémios podem ampliar os temperos, criando novos paradigmas ou requentá-los. Ser premiado no exterior fez com que Itamar Vieira Jr. fosse visto no Brasil. Premiar como livro do ano, na 64a edição do Jabuti, o "Também guardamos pedras aqui", de Luiza Romão, poeta negra, não fez a escritora que já era gigante, mas talvez ponha pimenta na literatura brasileira.
Ainda na pauta Saramago, quase dois anos atrás, conheci mais de perto o trabalho de outro premiado, o angolano Ondjaki, cuja doçura é percebida nos seus textos, na maioria deles. Diferente de outros escritores, Ondjaki coleciona fazeres para além da escrita, o que o torna muitos personagens. Penso no quanto é necessário criar estratégias de cuidado para dar conta da dinâmica na qual se insere a fim de poder ser si mesmo, exatamente por ocupar muitos lugares. Como sobreviver e garantir um viver sem se emaranhar nas próprias criações e demandas do mundo?
O que faz o escritor senão suas escolhas com ganhos e perdas?
Voltando para Annie Ernaux, na esteira das perdas e ganhos, na última Feira Literária de Paraty ela disse algo cortante para mim: falou temer o prémio. Temia que o Nobel a tirasse da escrita, lhe tirasse o tempo, afinal ela estava numa época da vida que precisava ser vivida na sua total intensidade porque não haveria momento de ser lembrada. Diferente da infância ou da juventude ou dos quarentas anos, não haverá tempo para se lembrar da velhice vivida. Essa percepção retumba em mim, me emociona e me convoca a algo que nem eu mesma sei o que é, mas me cria angústias e movimento. Creio que os escritores de fato são esses que nos invadem de uma forma a nos tornar outras pessoas, ou nós mesmos.
Yara Monteiro, escritora angolana, com quem tive o prazer de dividir um café e um show de jazz, diz: "minha alma respira pela ponta dos meus dedos". Gostei quando ela honestamente falou "acho que tenho alguma coisa importante a dizer... devo ter um ego gigante porque devo-me crer comparar ao criador, à natureza e daqui a minha necessidade em criar mundos e personagens".
Criar. O ato humano por excelência. O livro de Yara "Loose Ties" foi nominado para o 2023 Dublin Literary Award. Oxala tenhamos boas noticias.
Mas no quesito honestidade e humor, o poeta moçambicano Guita Jr., que lançou recentemente em Portugal "Chão e outras arritmias", pela Editora Kacimbo, de Angola, foi mais cortante na sua ironia sofisticada:
"Eu escrevo para me aparecer. Não vivo sem likes; há quem precise de insulina, quimioterapia, muletas, oxigênio ou comida. Eu sufoco sem likes!"
Guita estava brincando. Eu sei porque foi um longa conversa entre amigos e porque o insta dele é privado. E depois me disse, mui seriamente, "...não sei por que escrevo. Não mesmo. Às vezes tenho a necessidade de dizer coisas".
Mas a frase "faço isso para me aparecer" serve para pensar algo importante. Não seria este aparecer e escrever uma forma para ser? O sintoma de tentar descobrir-se pelo olhar do outro? Apesar do sentido pejorativo que palavras como narcisismo e ego carregam, pergunto se é possível fazer algo sem um ego capaz de sustentar nossas ações, mesmo sendo o ego apenas uma pequena parte do que somos e algo que mais parece um lego capaz (e necessário) de quebrar e se reconstruir a todo tempo.
"É na natureza do lego se desfazer...", essa é minha resposta padrão às lágrimas da minha filha quando sua obra rompe. Cortar-se, romper-se e refazer-se parecem algo comum ao lego e ao ego... e a um texto.
Antes de falar de João Mello, também escritor angolano, vou explicar rápido por que Angola está tão presente neste texto e na minha vida, só para não ficar estranho.
Era 2000 e eu conheci o Joca, um artista de Angola que mora em Itajaí, uma cidade portuária no sul do Brasil. Ele me contou, em detalhes, a fuga da sua família da guerra civil de lá, era 1971, ele um menino. Fiquei impressionada. E com o fato do Brasil, novamente, ser rota de Angola. Nossas histórias são imbricadas. Naquele ano comecei a escrever algo inspirada no Joca e a buscar mais da literatura angolana. Li com mais atenção Agualusa, Ana Paula Tavares, Ondjaki, conheci Yara e João Mello, Pepetela, e a admiração cresceu. O meu texto, que tem Angola, Brasil e Europa como lugares, ainda está amadurecendo, talvez me esperando para que algo em mim nasça para ser finalizado. O tempo dirá.
Por que conto isso? Porque ao fim e ao cabo tudo é afeto. Inclusive a eleição dos autores que cito aqui. A deusa da justiça, afinal, não é tão imparcial assim, estamos sempre a escolher o que ver. A verdade incomoda é que quando elejo minha mirada eu me desvelo. Alguns destacam as farpas da madeira, outros o que a madeira pode se tornar. Voltamos ao escritor-roteirista da própria vida. A forma como elegemos ver o mundo é a forma como mundo se revela para nós. Talvez as histórias sejam, na verdade, grandes estórias.
João Melo, jornalista e escritor que já morou no Brasil, angolano que hoje vive hoje entre Portugal e os Estados Unidos, me disse que escreve "para viver (ou, se quisermos, sobreviver)"... mas, sobretudo, escrevo para interagir com os meus contemporâneos, a começar pelos meus compatriotas, mas não só, é tomar posição perante as coisas do mundo e do tempo em que vivo. Para mim, a literatura é uma grande conversa...".
"...uma grande conversa..." o leitor também cria o texto quando lhe dá novos sentidos. A beleza da palavra tem disso, ela informa, mas pouco diz.
Talvez o que faz um escritor não seja um ego gigante, mas exatamente seu oposto, um vazio e a busca por construir sua própria história, algo ainda mais desafiador quando quem escreve é alguém que sente o mundo de forma abissal, que veste uma pele sensível e permeável. Talvez um escritor esteja a buscar sua voz e um personagem para si ou uma ancoragem através da palavra. Talvez, apenas talvez.
* Psicanalista e escritora, doutora em ciências humanas