Escrever um livro para lembrar karksi

Assume ter ficado profundamente tocado pela imagem  do homem que tentou alertar o Ocidente para o extermínio dos judeus e pelo silêncio que obteve como resposta. Daí o livro: para lhe render homenagem, repetir-lhe o nome.<br />
Publicado a
Atualizado a

De certa forma, sou um mensageiro. Penso que a literatura tem algo a ver com o mensageiro do mensageiro, do mensageiro. O que [Jan] Karski não conseguiu fazer, talvez a literatura o consiga. De forma menos secreta", afirma Yannick Haenel, referindo-se à tentativa que o jovem polaco fez nos anos 40 para conseguir impedir o Holocausto, e que é, afinal, o tema do seu livro (ver texto ao lado).

Há algo tocante na forma como o escritor francês - Haenel nasceu em Rennes, em 1967 - defende o homem que não conheceu, com quem nunca falou mas cuja história escolheu contar. Porquê?

"Escolhi-a quando vi o filme Shoah, de Claude Lanzmann. Foi a visão da pessoa de Jan Karski no filme que me tocou. E o que era particularmente importante é que Karski falava pelos judeus da Europa, não sendo judeu; era um católico que transmitia a palavra dos judeus", explica no encontro que recentemente manteve com o DN, em Lisboa.

Mas houve algo mais no filme de Lanzmann que tocou o fundador e co-editor da revista literária Ligne de Risque: percebi, quando vi a cadeira vazia, que teria de escrever o livro para render homenagem a Karski, para continuar a dizer o seu nome". O nome do homem que, afinal, se manteve em silêncio durante 35 anos, depois de ter sido confrontado com o máximo do sofrimento humano e a ausência de resposta ou de ajuda por parte de quem o podia fazer.

"Penso que Karski é alguém que pensou que as frases, a linguagem, poderiam mudar o mundo e impedir ou fazer parar o Holocausto", sublinha o escritor, na opinião de quem a história do herói polaco "quando se propaga cria um efeito de estupefacção, mesmo entre os muito jovens".

É que Haenel não se limitou a escrever o livro para o qual fez intensa pesquisa: o ex-professor de francês em Bergamo fez de Karski o tema de muitas das suas conferências em liceus, universidades, tanto em França como no estrangeiro. E as reacções foram, maioritariamente, as mesmas: "estupefacção pela ausência de resposta" ao pedido de Karski junto de Londres e de Washington, para que pusessem termo ao extermínio dos judeus europeus às mãos de Hitler.

Estamos em plena II Guerra. Seria possível Churchill e Roosevelt imporem-se a Hitler e acabarem com o extermínio? Assumindo que o livro que escreveu lhe modificou a vida, Haenel reconhece que "no momento em que Karski fez o pedido de ajuda (1943) não era possível a nível militar bombardear os alvos alemães que poderiam ajudar a salvar os judeus, mas em 1944 era possível fazê-lo; aí faltou vontade política. E, para mim, a verdadeira questão é a da vontade política; Karski e os judeus da Europa esperavam que um líder condenasse o extermínio".

Polónia, o país mártir da II Guerra Mundial. Como reagiu a pátria de Karski ao livro? Um sorriso abre o rosto de Haenel, até os seus olhos se tornam mais claros quando responde. "Os polacos manifestaram--se muito contentes por ter sido um francês a escrever este livro, e disseram-no, explicando que um polaco nunca o faria, porque se o fizesse iria ser acusado de estar a explorar a ideia de uma Polónia sacrificada, dividida entre Hitler e Estaline."

Yannick Haenel explica ainda que, na Polónia, Karski não é encarado ou recordado como um "portador das mensagens dos judeus a Washington, mas antes como um resistente. Mas, para mim, o que interessa é a afirmação feita pelo próprio Karski: 'Sou um católico judeu.'"

A publicação de Jan Karski - O Herói Que Tentou Travar o Holocausto valeu a Haenel o prémio Interallié 2009, mas também uma polémica algo ácida com Claude Lanzmann, o realizador de Shoah, onde Karski surge como testemunha do Holocausto.

O escritor afirma não entender a reacção de Lanzmann. "Fiquei surpreendido com o ataque, porque aconteceu seis meses depois da saída do meu livro, que eu lhe fizera chegar e que ele, no início, aplaudiu. Depois mudou de opinião."

Mas existem razões objectivas para as críticas? O filho do militar que escolheu a escrita como forma de se evadir do "verdadeiro pesadelo" que foi a sua passagem pelo colégio militar onde estudou, acredita que existem razões políticas e filosóficas para as críticas de Lanzmann.

"Filosóficas, porque para Claude Lanzmann está proibida a ficção no que toca a este momento histórico; políticas, porque Lanzmann não pôde suportar que eu criticasse a América e a Inglaterra e que propusesse levá-los a tribunal como cúmplices indirectos do Holocausto", afirma Haenel, que, frontal, prossegue: "Mas eu documentei-me bastante, li muitos livros, muitos deles americanos, sobre esta questão controversa, polémica, do abandono dos judeus pelos aliados. Lanzmann e os seus amigos em França não querem absolutamente que se ataque Roosevelt; ele é pró-americano e pró-israelita."

E que país defende o escritor, que casou com uma pintora italiana e trocou Paris pela "pacata" cidade italiana de Florença para viver? "Não sou antiamericano, mas penso que a Europa, o mundo ocidental, mentiu quando acreditou que tinha sido irrepreensível. O mundo livre, o mundo que ganhou a II Guerra, que derrotou o nazismo, não foi irrepreensível. Indirectamente, pela passividade, os líderes do mundo ocidental permitiram o Holocausto; nenhuma democracia foi capaz de agir para o impedir."

O admirador de João César Monteiro rebela-se contra a violência e contra a mentalidade hollywoodesca que domina o nosso século - livro só tem sucesso se for apimentado - e vai muito mais longe na sua crítica. Para ele, os processos de Nuremberga "serviram para os americanos mascararem a sua própria responsabilidade, e a prova está no caso Katyn; desde 1945 que os americanos sabiam que os oficiais polacos tinham sido mortos pelos soviéticos e não pelos alemães, mas havia que preservar a aliança com Moscovo, mesmo a expensas da verdade".

Porquê a escolha de César Monteiro? Porque, garante o pai da pequena Lucia, "é um grande realizador e os seus diálogos são extraordinários. Pessoas como Monteiro conseguem propor a verdade informal. Há que ser resistente para o conseguir".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt