Escolas residenciais para nativos americanos e ataques ao "reescrever" a história
Poucas semanas após a descoberta dos restos mortais de 215 crianças numa escola residencial na Columbia Britânica, a Cowessess First Nation comunicou que descobriu 751 túmulos não marcados no local de outra escola em Saskatchewan, a Marieval Indian Residential School. Como muitas outras escolas residenciais, estas escolas foram financiadas pelo governo do Canada e administradas por autoridades religiosas, nos séculos XIX e XX. A escola em Saskatchewan ficou aberta até 1997.
Com o objetivo de "assimilar a juventude indígena", essas escolas levaram à morte de mais de 6000 crianças indígenas americanas devido às péssimas condições sanitárias, má manutenção dos edifícios, falta de aquecimento e negligência, entre outros fatores. Esse enorme número de mortes de miúdos - num único país, o Canadá - é apenas a ponta do iceberg em relação às atrocidades que aconteceram nessas escolas. Abusos físicos e sexuais eram perturbadoramente comuns. As recentes descobertas levaram o primeiro-ministro canadiano, Justin Trudeau, a declarar que estava "terrivelmente entristecido" pela "vergonhosa lembrança do racismo, discriminação e injustiça sistémica que os povos indígenas enfrentaram".
No entanto, políticos e académicos sabem, há muito tempo, de outras atrocidades cometidas nessas escolas. A Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá, lançada em 2008, já havia declarado que o que aconteceu nelas foi um genocídio cultural e, como reacção, o governo canadiano se tinha desculpado formalmente. Também se sabia que os EUA e muitos países da América do Sul e Central também tinham instituições semelhantes para crianças nativas americanas, como muitos outros países tinham para os "seus" povos indígenas, ou aqueles nas "suas" colónias.
No entanto, as reacções que estamos a ver hoje a essas recentes descobertas são muito diferentes: por exemplo, ontem e hoje os media de incontáveis países falaram sobre elas, e mais e mais líderes políticos estão explicitamente a pedir desculpas por semelhantes atrocidades cometidas por seus países no passado. Por que razão as coisas estão a mudar tão drasticamente? Porque o clima social e político tem mudado recentemente precisamente devido a essas e outras descobertas, bem como a novos eventos, como o assassinato filmado de George Floyd, um afro-americano dos EUA, por polícias. Por exemplo, este último evento, juntamente com outros semelhantes, levou à recente internacionalização do movimento Black Lives Matter. Um número substancial de pessoas de vários países, incluindo ocidentais, cansou-se do que Trudeau correctamente descreveu como o "racismo sistémico, discriminação e injustiça" que os povos indígenas das Américas, África e outras regiões sofreram e continuam a sofrer. É por isso que os protestos Black Lives Matter levaram, por exemplo, à destruição ou remoção de várias estátuas de pessoas que foram directamente responsáveis por, ou promoveram, atrocidades como escravidão e assassinatos em massa ou genocídios culturais de povos indígenas.
No entanto, ao mesmo tempo que todos esses eventos estavam acontecendo, um contra-movimento muito forte emergiu rapidamente, incluindo muitos académicos ocidentais e comentadores dos media que argumentaram que a destruição ou remoção de tais estátuas e outras práticas semelhantes são parte de um movimento perigoso que tem o fim de "cancelar cultura" ou "reescrever a história". Esta é uma reação típica de pessoas que, assim que o status quo prevalecente é questionado, reagem criticamente e, muitas vezes, de forma veemente: ou seja, dos reacionários. Para mim, investigador e professor de uma emblemática Black University dos EUA - Howard University -, é surpreendente como os académicos podem empreender tais ataques contra "reescrever a história". Se a história já está totalmente "escrita", por que razão tantos historiadores - incluindo eles próprios - fazem pesquisas sobre ela? O que é que eles sugerem que devemos fazer, com descobertas como as agora anunciadas pela Primeira Nação Cowessess?
Ignorá-las apenas porque elas nos incomodam, pelo que nos dizem sobre as nossas sociedades e seu passado? Não só a história não está "escrita", como é dinâmica, ainda não acabou, obviamente. Nesse sentido, considerar que remover estátuas equivale a "cancelar" a história não tem nenhum sentido: isso é em si parte da história, parte do que se vai falar, junto como muitas outras coisas, nos livros de história, no futuro, sobre os anos de 2020 e 2021. Se a história não mudasse, ainda usaríamos antigos objectos médicos obsoletos, nas nossas cirurgias: removê-los e substituí-los por outros não foi cancelar a história, foi um muito relevante acontecimento histórico. Ainda se podem ver esses objetos nos museus, mas não os ter removido das salas de operações e ter usado outros mais eficientes dizendo que isso seria "cancelar" a história seria absurdo. Textos históricos e científicos produzidos na Grécia Antiga não sabiam nada da história da China Antiga, nem sobre genes, por exemplo, mas agora nos livros didáticos obviamente falamos dessas coisas. Adicionamos novas informações ao que os gregos antigos sabiam: isso não foi cancelar a história ou a cultura da Grécia Antiga.
Sendo tudo isto óbvio, quando os reacionários argumentam que "a história está escrita", como se estivesse gravada na pedra, eles não se estão realmente a referir à história, mas sim às narrativas erróneas que certos autores ocidentais criaram, em nas quais eles querem acreditar e querem que os outros continuem a aceitar. Os académicos e comentadores que dizem isso consideram-se os "vencedores" da história: do Ocidente, da nossa "superioridade" moral e cultural, ou da ciência e conhecimento ocidentais, de que eles sentem fazer parte. Portanto, eles sentem essas novas descobertas e mudanças como um ataque a si próprios ou uma crítica à sua cultura, que eles vêem como estando a ser atacadas e "canceladas" . Mas, na realidade, o que aconteceu durante muitos séculos foi precisamente o contrário: as nossas sociedades eram aquelas que tentaram sistematicamente, e muitas vezes desesperadamente, por meio de práticas atrozes como as que foram feitas nessas escolas residenciais, cancelar totalmente as culturas dos "outros": literalmente, genocídio cultural, como foi reconhecido pela Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá. Como o próprio nome dessa comissão indica, estas comissões e estudos não estão a tentar cancelar nossas culturas ou história. Ao contrário, elas estão a contribuir para que se saiba realmente a verdade do que aconteceu: o que realmente fizemos no passado, incluindo não apenas as coisas nobres como ter descoberto novos métodos científicos e vacinas que salvaram e salvam milhões de vidas cada ano, mas também as atrocidades. Tudo, não só uma parte, idealizada, da nossa história.
Um exemplo claro de tais narrativas reacionárias e idealizadas, e de como têm sido utilizadas, e ainda são hoje, como uma ferramenta de aculturação, é justamente o uso do termo "escolas residenciais" ou "internatos", como se essas escolas fossem altruístas e/ou administradas por pessoas amáveis por razões nobres. Essa não é a verdade: eram parte de um plano para empreender um genocídio cultural que tirou a vida de milhares, e destruiu a vida de milhões, de crianças indígenas americanas. Reconhecer esses factos não é "cancelar" a cultura ou a história, mas sim levar em consideração novos dados para ter um conhecimento mais completo e abrangente de nossa história, sem tabus, denominação, ou idealização. Não é fácil olhar no espelho e ver coisas que não gostamos de ver sobre nós, a nossa sociedade, ou a nossa história, especialmente coisas horríveis como as feitas àquelas crianças. Mas tentar evitar olhar no espelho certamente não é uma solução, mas sim parte do problema, pois não nos permite entender por que essas coisas realmente ocorreram e o que podemos fazer para evitar que aconteçam novamente.
Antropólogo e biólogo, Howard University, Washington DC