Erdogan sonha ser ele a festejar em 2023 os cem anos da Turquia. Não será fácil

No poder há mais de uma década, como primeiro-ministro e agora presidente, são muitos os desafios para um líder que quer deixar marca na história
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As segundas eleições em seis meses e para quê?

- Mais voto menos voto, as eleições legislativas antecipadas de 1 de novembro deverão confirmar a relação de forças mostrada nas eleições de junho: os islamo-conservadores do AKP com 41%, os sociais-democratas do CHP com 25%, os nacionalistas do MHP com 16% e o partido pró-curdo HDP com 13%. O que significa que a falta de maioria absoluta do AKP, pela primeira vez desde que chegou ao poder em 2002, persistirá e os políticos turcos terão de chegar a um entendimento, por muito difícil que seja. Ora, um governo de coligação, mesmo liderado pelo seu braço direito e sucessor Ahmet Davutoglu, é tudo menos aquilo que deseja o presidente Recep Erdogan. Ficou evidente desde que os resultados de junho foram conhecidos que Erdogan tudo faria para um regresso às urnas que desse a desejada vitória esmagadora ao AKP. Para isso acontecer, o surpreendente HDP teria de falhar a fasquia dos 10% que dá entrada automática no Parlamento, oferecendo assim um bónus aos outros partidos, sobretudo o de Erdogan. Só assim o ex-primeiro--ministro poderia avançar com uma revisão constitucional que reforçasse os poderes presidenciais, como é sua intenção, e manter-se à frente do país até 2023, ano do centenário da república. Não faltam mesmo especulações sobre a motivação do reinício da guerra no verão passado aos separatistas curdos do PKK ser o reforço do sentimento nacionalista turco em detrimento do HDP, que sob a liderança carismática de Selahattin Demirtas até conseguiu votos não curdos.

Potência económica ainda com margem para crescer

- Com taxas de crescimento de 10% em 2010 e 9% em 2011 ("à chinesa", como gostam de lembrar os diplomatas turcos), a economia da Turquia teve uma década de espetacular crescimento que ajudou muito ao sucesso eleitoral de Erdogan, primeiro como chefe do governo e desde 2014 como presidente da república. Mas o ritmo abrandou e este ano o PIB deverá crescer apenas 2,9% e em 2016 talvez 3%, o que pode fazer inveja a uma União Europeia em crise, mas sabe a pouco para uma economia emergente. Membro do G20 e com um PIB de 822 mil milhões de dólares, a Turquia ambiciona ultrapassar a curto-prazo a barreira do um bilião de dólares de PIB, o que seria uma coroa de glória para Erdogan. Mas para isso terá de ultrapassar algumas consequências negativas da guerra na Síria, como o possível fim (ou redução) da cooperação económica com a Rússia, cujas empresas fornecem gás e se preparam para construir a primeira central nuclear da Turquia.

Transformar os curdos em verdadeiros cidadãos turcos

- Os curdos serão 15% a 25% dos turcos, que pode significar até 20 dos 80 milhões de turcos. Maioritários no sudeste, esta etnia de língua próxima do persa acaba por estar também bastante presente nas grandes metrópoles turcas, a começar por Istambul, muitas vezes descrita como "a maior cidade curda". Esta clara dispersão geográfica joga contra as pretensões separatistas do PKK, o grupo armado (considerado terrorista pela União Europeia) que neste momento volta a ser atacado pelo exército turco, após ter fracassado o processo de paz que o próprio Erdogan lançou. Mais pobres que a média do país, as regiões curdas da Turquia sentiram nos últimos anos o efeito positivo do boom económico. E isso, aliado ao reconhecimento dos direitos culturais e linguísticos dos curdos, tinha levado o PKK a dialogar com o governo de Ancara, tendo mesmo o seu líder histórico, Abdullah Ocalan, preso numa ilha, apelado ao fim da luta armada há uns meses. Mas o sucesso militar das milícias curdas do Iraque e da Síria, onde são os aliados preferenciais do Ocidente contra o Estado Islâmico, começou a preocupar Ancara, oposta a qualquer ideia de Grande Curdistão (que iria até ao oeste do Irão). E quando em julho o PKK matou polícias turcos, acusando-os de cumplicidade num atentado do Estado Islâmico em Suruç, Erdogan pôs fim ao diálogo e ordenou que os militares retaliassem. Ora isto acontece no preciso momento em que um partido curdo está (ou voltará a estar) representado no Parlamento e pode influenciar até a formação de um futuro governo, o que significa que a solução do problema curdo é tanto militar como política e económica.

Sempre de olhos na Europa, mas com menos entusiasmo

- Cabeça na Europa e corpo na Ásia. É uma síntese possível da geografia da Turquia, mas também reflete a velha vontade de adesão à União Europeia: em 1963, a Turquia era já um membro associado da CEE, em 1999 tornou-se candidato oficial e em 2005 iniciaram-se as negociações para a adesão à agora União Europeia. Mas os obstáculos colocados por países como a Alemanha mostraram-se quase inultrapassáveis e Erdogan, tal como boa parte da população, perdeu o entusiasmo pela UE (sondagens mostram apenas 33% de apoio à adesão, muito abaixo dos valores do início da era AKP). Mas a recente visita de Angela Merkel, em que a chanceler alemã prometeu a Erdogan acelerar o processo de adesão em troca de contenção dos refugiados, pode ser um ponto de viragem como notava esta semana o jornal Hurriyet. E se os turcos deixarem de precisar de visto para entrar no espaço Shenghen, já será uma importante vitória. Uma medida plena de boa vontade (e de justiça) para compensar o previsível: que o pequeno Chipre, por causa da presença militar turca no Norte da ilha desde 1974, tudo irá fazer para bloquear a adesão.

Há forma de sair do atoleiro sírio sem perder a face?

- Nos tempos áureos do Império Otomano, quase todo o Médio Oriente era território turco. Depois, com a república proclamada em 1923, a moderna Turquia tornou-se um caso excecional na região, com relações tensas com os árabes, membro da NATO e parceiro estratégico de Israel. Após a chegada de Erdogan ao poder, tudo foi posto em causa do ponto de vista estratégico exceto a velha pertença à Aliança Atlântica e o papel de gendarme dos Estados Unidos. Apoiante convicto da causa palestiniana, o hoje presidente entrou em choque com o Estado Judaico e se as relações económicas se mantêm excelentes já as políticas estão longe do nível do passado, tendo-se até desfeito a estreita colaboração militar entre turcos e israelitas. Ao mesmo tempo, a Turquia dos governos AKP fez uma reaproximação acelerada ao mundo árabe (a mulher de Erdogan é de etnia árabe), procurando desfazer os mal-entendidos herdados da Primeira Guerra Mundial, quando Lawrence da Arábia incitou as tribos a revoltar-se contra o sultão. Com a Primavera Árabe, uma política externa neo-otomana impôs-se, com a Turquia a servir de exemplo de conciliação entre islão e democracia e Erdogan a ser recebido em setembro de 2011 como herói num Egito que se libertara da ditadura de Hosni Mubarak e gritava vivas à democracia. Contudo, o volte-face no Egito, com o derrube do presidente eleito Mohammed Morsi e a perseguição à Irmandade Muçulmana, significou o fim da influência turca, com o novo poder militar a buscar apoio sobretudo na Arábia Saudita. Mas a cartada mais forte e arriscada de Erdogan no mundo árabe foi o apoio à revolta síria, virando costas a Bachar Assad, até então um vizinho do sul acarinhado. E o líder turco precisa agora que o futuro da Síria seja favorável às suas pretensões, o que passa no mínimo pela saída de cena de Assad, que Erdogan classifica como ditador e assassino. É o mínimo para justificar o envolvimento num conflito que se arrasta há quatro anos, pôs a Turquia a lidar com dois milhões de refugiados sírios, com terrorismo do Estado Islâmico (que tem células turcas) e agora até com a presença militar russa junto às suas fronteiras.

Conciliar islão e democracia, mas sem questionar Ataturk

- Nenhum líder turco ousará pôr em causa abertamente a figura de Mustafa Kemal Ataturk, nem sequer Erdogan. Mas a verdade é que o país é hoje mais conservador em termos de costumes do que há uma década e que as mulheres com véu na cabeça, a começar pela primeira-dama Emine, concorrem com as que usam minissaias como símbolo da turca de hoje. Conciliar o respeito pelo islão como a construção de uma sociedade moderna foi uma das grandes promessas do AKP em 2002. Mas o modo como tal tem sido feito é tudo menos consensual. Basta olhar para o mapa dos resultados eleitorais e ver que há uma Turquia europeia e da costa do Egeu que vota pelo CHP, o velho partido de Ataturk, o fundador da república sobre as ruínas do Império Otomano, e uma Turquia do interior da Anatólia que é islamo-conservadora.

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