Erdogan perante os desafios da inflação e de uma Turquia dividida
Os resultados ainda não eram oficiais e já Vladimir Putin dava os parabéns a Recep Tayyip Erdogan pela sua vitória na segunda volta das presidenciais turca, com o presidente russo a saudar a "política externa independente" do homólogo como motivo para o resultado. Seguiram-se lhe as saudações do americano Joe Biden e os aplausos vindos de Pequim, mostrando bem a importância estratégia da Turquia, reforçada ainda mais desde a guerra na Ucrânia. Mas as saudações dos seus pares não diminuem a escala dos desafios internos que Erdogan enfrenta, a começar pela economia.
Após duas décadas à frente da Turquia - primeiro como chefe do governo, depois como chefe do Estado -, Erdogan conseguiu apenas mais quatro pontos percentuais e mais dois milhões de votos do que o rival Kemal Kilicdaroglu, a sua vitória mais curta de todas as eleições que disputou. E se no discurso que fez em Istambul, ainda na noite de domingo, do topo de um autocarro, o presidente islamo-conservador garantiu que "ninguém perdeu esta noite, há 85 milhões de vencedores", procurando unir o país, não resistiu a atacar a comunidade LGBT e a ridicularizar o rival. "Bye bye Kemal", despediu-se do candidato do Partido Republicano do Povo (CHP, laico) que foi a votos apoiado por cinco outros partidos da oposição, incluindo os pró-curdos, numa inédita frente unida contra Erdogan. Kilicdaroglu denunciou "as eleições mais injustas nos últimos anos", com os observadores internacionais a destacarem que, tal como na primeira volta de 14 de maio, o controlo do Estado sobre os media e os limites à liberdade de expressão criaram "um ambiente desigual e contribuíram para a vantagem injustificada" de Erdogan. O seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento) já garantira, com os seus aliados, nova maioria absoluta na primeira volta destas eleições.
Se dúvidas houver sobre as divisões na Turquia, basta olhar para os resultados no mapa. Às franjas pintadas com o vermelho da coligação de Kilicdaroglu, o litoral ocidental, incluindo Istambul, o extremo oriental e uma mancha em torno da capital Ancara, contrapõe-se a mancha amarela de eleitores de Erdogan, sobretudo nas zonas rurais e até nas províncias de Hatay e Gaziantep, das mais atingidas pelos fortes sismos de fevereiro que fizeram 50 mil mortos.
Aos 69 anos e com novo mandato que só termina em 2028, Erdogan conseguiu durante a campanha desviar o foco da crise económica e do aumento do custo de vida, aprovando aumentos nas pensões e salários, oferecendo descontos nas contas da energia enquanto centrava o debate nas questões da segurança e família.
Mas num ano em que a Turquia vai celebrar o centenário da proclamação da república por Mustafa Kemal Atatürk, a 29 de outubro de 1923, Erdogan teve de reconhecer a inflação como a prioridade imediata. "Resolver os problemas causados pelo aumento dos preços e pela inflação é o mais urgente", admitiu ontem diante dos apoiantes reunidos frente ao palácio presidencial em Ancara. A inflação atingiu no ano passado 85%, o máximo em 24 anos. E se segundo os dados oficiais terá caído no mês passado para 44%, analistas independentes citados pela Al-Jazeera contestam esse valor, apontando antes para que se situe agora nos 105%. Uma situação para a qual terá contribuído a política económica pouco ortodoxa do presidente que tem passado por baixar as taxas de juros e desvalorizar a moeda para combater a crise. Apesar disso, a economia turca cresceu 5,6% em 2022, abaixo mesmo assim dos 11,4% do ano anterior.
Membro da NATO e 19.ª economia mundial, a Turquia ganhou ainda mais destaque no xadrez global desde a invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022. Apesar do seu desagrado com a proximidade entre Ancara e Moscovo - não só Erdogan se demarcou das sanções impostas pela NATO à Rússia como o comércio entre os dois países até aumentou desde o início do conflito - os aliados ocidentais não podem negar que a Turquia é um aliado crucial. Mesmo se imprevisível.
E enquanto vai participando em todas as missões da NATO e até envia armas para a Ucrânia, a Turquia de Erdogan aproveitou a proximidade com ambos os lados para mediar um acordo que desbloqueou a exportação de cereais bloqueados nos portos ucranianos e essenciais para alimentar zonas do mundo que dependem deles.
Aprovada a entrada da Finlândia na NATO, Erdogan tem ainda de decidir se levanta o bloqueio que impôs (tal como a Hungria) à adesão da Suécia. Outra preocupação, esta sobretudo da UE, é a questão das migrações, com a Turquia a receber milhares de milhões de euros de Bruxelas para apoiar os quase quatro milhões de refugiados sírios que fugiram à guerra, travando a sua vinda para a Europa.
Muitas vezes descrita no Ocidente como a ponte entre a Europa e a Ásia, a Turquia sempre foi um ponto estratégico importante e a guerra na Ucrânia só veio reforçar a posição do país na comunidade global. Com Erdogan ao leme nos próximos cinco anos, os peritos não esperam grandes surpresas, mas o Ocidente vai sem dúvida ficar atento ao que se passa em Ancara. Como escrevia ontem a BBC numa análise assinada pela sua editora para a Europa, Katya Adler: "O que a Turquia faz importa".
helena.r.tecedeiro@dn.pt