Eram jovens, radicais, de blusão de cabedal e O Livro Vermelho na mão
Foram quase ao engano, fascinados por uma linguagem radical, levados por amigos, num fenómeno cultural e ideológico. Muitos saíram de lá rapidamente, numa militância tão intensa quanto curta - eram jovens, bastante jovens, muitos vindos da classe média, que liam avidamente e encontraram no maoismo o campo político para participar. Hoje passam 40 anos da morte de Mao Tsé-Tung, o líder chinês que encantou com a sua Revolução Cultural uma geração europeia, algures entre os finais de 1960 e a segunda metade da década de 1970.
Há coisas que não se explicam. Ou são difíceis de explicar. António Costa Pinto - cientista político que também andou por estes movimentos - reconhece ao DN que, quando José Manuel Durão Barroso foi eleito presidente da Comissão Europeia, muitos jornalistas (sobretudo estrangeiros) lhe perguntavam pelo percurso maoista do antigo primeiro-ministro português. "É o cabo dos trabalhos explicar", diz. Para Costa Pinto, a adesão ao maoismo não é por causa da ditadura que se vivia em Portugal. "É um fenómeno cultural e ideológico", que tanto acontece em França e em Itália, que são democracias, como atinge Portugal e Espanha, duas ditaduras.
A partir da sua experiência pessoal, que se confunde hoje com o olhar do politólogo, Costa Pinto regista que o maoismo "é uma experiência de juventude".
O socialista Jorge Coelho, que esteve na fundação da UDP, recorda o entusiasmo quase juvenil por "um maior radicalismo, relativamente àquilo que era o papel normal da oposição, das correntes próximas do PCP (que era o que liderava verdadeiramente a oposição)", mas também "um grande endeusamento por aquilo que tinha que ver com Mao Tsé-Tung".
Com humor - próprio de quem não se arrepende "em nada" do que fez -, conta que "fazia parte ir a Paris comprar O Livro Vermelho". E resgata da memória outro acessório essencial para "qualquer revolucionário que se prezasse": "Um blusão de cabedal para aguentar as traulitadas da polícia de choque."
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Sem querer alongar-se muito sobre esse tempo, Esther Mucznik recorda que o maoismo "fascinou pela sua radicalidade - eram tempos assim". Vivendo na altura em Paris, hoje a estudiosa em questões judaicas pensa "que essa radicalidade era uma radicalidade absolutamente cruel, destituída de qualquer sentido ético".
António Costa Pinto regista que desses tempos lhe ficou "uma espécie de vacina, que é o apego aos valores democráticos". E repete-se: "Um apego à democracia e ao funcionamento da democracia liberal." Jorge Coelho completa, "com toda a sinceridade", que "na altura via o mundo e a vida de uma forma" que hoje lhe "permite dizer "felizmente, nada daquilo ganhou, nem em Portugal nem em lado nenhum, se não era uma desgraça"".
No entanto, o antigo ministro dos governos de António Guterres explica que viveu "com a força que era possível viver com os anos que tinha situações que era preciso encarar de forma diferente". Afinal, "estávamos a viver uma revolução e, antes, uma ditadura - e estes partidos, seja eles quais forem - lutaram pela liberdade em Portugal", diz, referindo-se à miríade de grupelhos, organizações e partidos que vestiram as cores do maoismo.
Uma disciplina que ficou
Costa Pinto e Jorge Coelho coincidem noutro aspeto sobre a sua experiência maoista. Desses tempos, o politólogo guarda "um valor positivo, que não é ideológico: o valor da disciplina, o da organização e o da eficácia". E o socialista releva "a grande capacidade de resistência a situações adversas, a grande disciplina quer de pensamento quer de ação, e um grande respeito por situações difíceis da vida das pessoas".
No rebuliço daqueles tempos, os jovens deixavam levar-se por correntes de que só mais tarde percebiam o seu verdadeiro significado. Jorge Coelho recupera uma frase atribuída ao antigo chanceler social-democrata alemão, Willy Brandt, que dizia que "aos 18 anos qualquer jovem de extrema-esquerda será um convicto social-democrata aos 40 anos".
Muitos acabaram por deixar o maoismo depois do 25 de Abril, confrontados com a consolidação da democracia liberal, como refere António Costa Pinto, que deixou o maoismo na "chamada cisão da Voz do Povo", jornal de uma corrente maoista. Jorge Coelho deixa a UDP depois do 25 de novembro: "O meu corte foi a seguir ao assalto à Embaixada de Espanha", em setembro desse verão quente. "Assisti ao assalto do muro da Gulbenkian."
Estávamos no segundo de 42 anos da democracia.
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