Eram felizes e não sabiam

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A expressão "era feliz e não sabia" ganhou atualidade na pandemia.

Afinal, quando reclamava daquele empregado de mesa desatento e demorado do restaurante onde nem se comia tão bem assim, era feliz e não sabia porque, pelo menos, podia frequentar restaurantes nem tão bons assim e com serviço desatento e demorado.

Afinal, quando se queixava dos centrais da sua equipa, dados a erros de marcação, alívios deficientes e até a um autogolo ou outro, era feliz e não sabia porque, pelo menos, podia ir ao estádio assobia-los em vez de os vaiar do sofá.

Afinal, quando encarava a ceia de natal como um sacrifício por causa do reencontro com aqueles tios e tias e primos e cunhados que acham que o Bolsonaro e o André Ventura até têm uma certa razão, era feliz e não sabia porque pelo menos podia inventar uma desculpa esfarrapada para faltar à reunião em torno do bacalhau - agora todos têm a mesma desculpa e não é nada esfarrapada.

No Brasil, ou, pelo menos, no Brasil político, o "era feliz e não sabia" é muito anterior às circunstâncias da pandemia.

Sob José Sarney, o coronelão nordestino que, por causa de terríveis coincidências, se tornou o primeiro presidente da redemocratização, mesmo o mais empedernido dos democratas e anti-militaristas deve ter sentido saudades da então recém defunta ditadura militar ao conviver com uma inflação quase em 2000%.

Mas sob Collor de Mello, o presidente envolvido em esquemas de corrupção no seu entorno familiar e autor da ideia de congelar as poupanças dos cidadãos, os brasileiros, coitados, sentiram falta de Sarney.

Mais recentemente os absurdos de Dilma Rousseff na condução da economia levaram o país a nova crise. Com o dólar alto, a impedir as classes médias e remediadas de ir à Disneyworld, e a corrupção de Brasília detalhada todas as noites em doses cavalares em noticiários que pareciam editados de Curitiba por Sérgio Moro, os brasileiros foram às ruas exigir a queda dela.

Colocaram no lugar Michel Temer, um dos símbolos maiores da corrupção de Brasília. E o dólar continuou a subir. E o rato Mickey a ficar cada vez mais longe.

Depois de se reunir com corruptos nos porões do Palácio do Jaburu às escondidas da polícia, de mandar um colaborador próximo correr pelas ruas de São Paulo com uma mala cheia de dinheiro dada por outro vigarista, de se rodear de homens, todos brancos, ricos e oportunistas, que chegaram a alugar apartamentos só para esconder os milhões desviados, Temer foi chamado de tudo, à direita e à esquerda - até de mordomo de filme de terror, por causa da sua sinistra aparência física.

Mas não se pode dizer do cidadão de origem libanesa que não tivesse os mínimos de sentido de estado e de conhecimento das liturgias do cargo de presidente. E que perante uma pandemia, a enfrenta-la, não tivesse agido com um pingo de inteligência e de empatia.

Pois é, o coro "fora Temer", que nos dois anos de gestão do presidente-tampão se tornara obrigatório, transformou-se nestes dois anos num sentido "volta Temer" - afinal, por comparação com a aberração atual, os brasileiros eram felizes sob o governo do mordomo de filme de terror e não sabiam.

Ou menos infelizes. Porque a expressão "pode sempre piorar" também tem ganho atualidade na pandemia.

Na lista de absurdos desta semana de Jair Bolsonaro está, em primeiro lugar, a guerra cega contra a vacina Coronavac só por ter sido politicamente possibilitada pelo governador paulista João Doria, com quem o presidente do Brasil mantém briga mesquinha pelo Planalto em 2022 - se Bolsonaro, ao menos, tivesse combatido a pandemia com metade do entusiasmo com que combate a vacina...

Além disso, foi o último chefe de estado do planeta a reconhecer a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos. Temer, pelo contrário, traiu Dilma por ciúmes de Biden: queixou-se, em carta, de ela se ter reunido com o então "vice" de Obama sem o convidar.

Mas, como se sabe, pode-se sempre piorar: três anos depois um presidente do Brasil disse "I love you" a Trump em público perante o ar indiferente do americano.

Correspondente em São Paulo

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