ERA UMA VEZ UM SONHO
Wilson estava a chegar a Manique, no Ribatejo. Ia de Lisboa, libertado pelo 25 de Abril dos seis anos de prisão a que fora condenado por assaltar um banco. Garante que a ideia lhe surgiu pelo caminho: a estrada para chegar à pequena vila ribatejana corre a par com os muros da Torre Bela, a maior herdade da região. E, em pleno período revolucionário, o muro da quinta não escapou à ideia que varria o País: "A Terra a Quem a Trabalha." Wilson diz que leu a frase e soube o que ia fazer a seguir.
O que fez ficou registado para a posteridade no documentário Torre Bela, do alemão Thomas Harlan, actualmente em exibição no Cinema King, em Lisboa, um documento que retrata os oito meses de ocupação da propriedade que era então do duque de Lafões. Wilson reclama para si a paternidade da ocupação: chama-lhe "utopia" e chama-lhe sua. Os outros, rostos que vão surgindo também no ecrã, no filme do realizador alemão, não lhe negam a liderança. Mas reclamam o seu quinhão na história: "Deixei lá muito trabalho"; "Deixei lá muito suor." A passagem pela herdade não lhes mudou a vida. Mas se a Torre Bela não foi o futuro, ganhou o seu lugar no passado : "Para nós foi uma coisa nova, extraordinária."
À procura de trabalho
Todos garantem que só queriam um sustento, que as coisas se tinham resolvido de outra maneira se o duque não lhes tem recusado o trabalho que a enorme quinta permitia. "Eu nunca fui contra a Torre Bela nem os duques, eu era contra que aquela herdade não desse um bago de milho a ninguém", diz Rui Travassos, padeiro de Manique que deu o pão para os ocupantes, até estes terem o seu próprio forno e fazerem o pão na quinta.
Como ele, outros. Não queriam saber de política - queriam trabalho. Por isso, ocupados os terrenos, constituída a cooperativa da Torre Bela, muitos não gostaram do passo seguinte: a entrada no palácio é, ainda hoje, motivo de zangas e acusações. Joaquim Silva (ou da Ereira, como é conhecido na terra) ainda se exalta. "Revoltei-me muito, até fui para lá com uma espingarda, só não dei um tiro num [dos que entraram] porque não calhou... Nós íamos lá era para amanhar os terrenos."
Mas o filme também mostra os ocupantes a remexer os pertences que os duques deixaram. Que foram mexidos e remexidos é o mais que qualquer um reconhece. "O que tenho é meu, não tenho cá nada do duque", diz Maria Albertina, mulher de Joaquim, antes de acrescentar que o que lá havia foi para o uso comum. Recorda com desvelo um objecto em particular: "Costumo dizer ao meu filho que nasceu em berço de ouro: dormiu no berçário dos duques."
Mas o que fez furor entre os ocupantes foi outra coisa. "Havia um piano, toda a gente tocava naquele piano", diz Teresa Alves, hoje com 41 anos (na altura com nove, ia para a quinta com a avó). Uma recordação partilhada por Rui Travassos, mas já em versão de adultos: "As pessoas diziam por aí que tinham escavacado o piano a tiro. Uma vez peguei-me com uns tipos que disseram isso, levei-os lá só para lhes mostrar o piano."
A vida na herdade
Celestina Alexandre era a cozinheira. Com o marido, eram um dos casais que vivia na herdade. "Ficávamos cá fora, numa casinha particular [as casas dos empregados, no tempo do Duque]. Os solteirões ficavam no Palácio." O marido trabalhava no campo, ela na cozinha, as crianças de início andavam por ali, depois passou a haver uma creche. Celestina recorda que cozinhava para 30 a 40 pessoas. Ou mais, na época da apanha do milho "vinha muita, muita gente".
A cooperativa da Torre Bela instituiu por alguns meses um modo de vida a que ninguém estava habituado: há uma cena do documentário que o demonstra na perfeição, com um dos agricultores (conhecido como Chiné, já falecido) a resistir a entregar a enxada para uso comunitário. Mas há outros exemplos.
Na herdade, ninguém decidia por ninguém - ou a ideia era essa, há quem diga que, às tantas, "já havia patrões" - e tudo se discutia. E, em pleno Verão de 1975, até se discutiu porque é que os homens não ajudavam na cozinha. Houve mesmo uma decisão comunitária que impunha que toda a gente (ou seja, eles) levantasse e limpasse o prato quando terminava a refeição. Wilson zangou-se com o pai: a medida tinha acabado de ser aprovada, mas ao primeiro almoço que se seguiu João Filipe voltou a fazer o que sempre fizera e o que todos faziam - passar a tarefa à mulher. "Ele gostava muito dela, não estava era habituado a fazer isso", relembra.
Depois da Torre Bela
As razões pelas quais foram saindo da herdade, muitos antes da expulsão imposta pelos militares, já depois do 25 de Novembro, são as mais diversas e também elas um friso do que foi a Torre Bela. Joaquim da Ereira, "comunista ferrenho", saiu porque "não concordava com as ideias do Mortágua" [Camilo Mortágua, do movimento de esquerda LUAR, que Wilson chamou para ajudar à ocupação e à organização dos trabalhadores]. Maria do Rosário, que foi tesoureira, foi-se embora por causa dos boatos sobre "casos" na herdade. Celestina e João Alexandre foram à procura de melhor vida para França - foram, aliás, muitos os que o fizeram.
Arlindo Gomes, que era então da comissão administrativa da junta de freguesia (surge no documentário em acesa discussão com os cooperantes) tem uma explicação para isso. Diz que os ocupantes da herdade "tiveram algumas dificuldades de integração na população. A maior parte foi-se embora, emigraram." Do outro lado, entre quem morou na Torre Bela, há quem diga o mesmo. E, 32 anos depois, ainda se assiste a altercações, com os ocupantes qualificados como "essa cambada de gatunos que foram para lá roubar". "Nunca roubei nada a ninguém" é a resposta generalizada. E uma outra há que também se repete. O que fazem 30 anos a uma utopia? "Saudades..." |