Era uma vez um menino chamado Nicolau
No eco da morte recente do ilustrador Jean-Jacques Sempé (1932-2022), ver uma animação que retrata a sua parceria criativa com René Goscinny (1926-1977) tem um especial efeito nostálgico. Até porque Le Petit Nicolas: Qu"est-ce qu"on Attend pour Être Heureux, de Amandine Fredon e Benjamin Massoubre, não é uma típica animação infantil; aqui aposta-se menos nas aventuras do Menino Nicolau do que nas conversas íntimas que essa famosa personagem estabelece com cada um dos seus criadores. São eles o foco de um argumento co-escrito pela filha de Goscinny, Anne, que capta, de uma só vez, o entusiasmo do processo de criação e a beleza de uma amizade fortalecida nos detalhes do imaginário da infância. Sem dúvida que o primeiro público deste filme vencedor do Festival de Annecy são os fãs da série de banda desenhada, mas para os miúdos que não conhecem, eis uma boa introdução.
Em antestreia por estes dias na Festa do Cinema Francês, O Menino Nicolau - A Felicidade Não Pode Esperar presenteia-nos com uma graça parisiense e uma forma de abordar as personagens que só se pode definir como um trabalho de amor sobre outro trabalho de amor. Afinal, esta é a história do nascimento de Le Petit Nicolas, que juntou Sempé e Goscinny: foi o primeiro que apresentou ao outro um esboço da figurinha e pediu-lhe ajuda para desenvolver, pela escrita, o seu universo. Assistir aos momentos em que foram surgindo as ideias é particularmente delicioso, seja o nome "Nicolas", o contexto familiar do pequeno herói ou a invenção do seu melhor amigo, o insaciável Alceste (que, ficamos a saber, será inspirado no próprio Goscinny, um bom garfo...). E o resultado dessa construção conjunta é bem conhecida: o menino de classe média (versão final de uma hipótese mais rebuscada) dado a traquinices, dentro e fora da sala de aula.
É verdade que Fredon e Massoubre revisitam alguns episódios domésticos e aventuras canónicas do Menino Nicolau, justamente para celebrar um legado, mas trata-se sobretudo de trazer para a frente a biografia dos criadores através da personagem. O simpático fedelho ora aparece no atelier de Sempé, comentando os seus desenhos, ora visita Goscinny, sentando-se nas teclas da máquina de escrever (numa secretária onde se vislumbram os bonecos de Astérix e Obélix, também da sua autoria). Entre um e outro, revelam-se narrativas diferentes mas com tonalidades semelhantes de alegria e tristeza. Em Sempé, uma paixão pelo jazz e por Paris, que o levou a alistar-se no exército para fugir a um ambiente familiar pouco luminoso; em Goscinny, o gosto pelo cinema, a experiência em Nova Iorque (onde se cruzou com o cartoonista Harvey Kurtzman e o ilustrador Morris), as memórias da infância em Buenos Aires e as do nazismo. Ambos começaram por sentir na pele o desalento da recusa. Mais tarde, os seus caminhos cruzaram-se e souberam reconhecer o valor mútuo.
"Também falas com ele?", repara Goscinny a certa altura. O fio emocional desta animação tem tudo que ver com esse reconhecimento do poder da imaginação, ou com a personagem que ganha vida na cabeça dos autores e estabelece um elo entre os dois. Simplesmente adorável.
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