"Era incapaz de convidar alguém para cantar comigo"
O encontro com Miguel Araújo foi a desculpa perfeita para ir até ao Porto e voltar a conhecer uma cidade que se fez mais bonita do que nunca, com fachadas coloridas e gente nova a encher esplanadas e bares, restaurantes e jardins. E ali pela Foz, num dia que podia ser de verão, subir até ao largo da igreja e encontrar o Wish, encravado numa ruela onde tradição e modernidade se casaram para a vida teve um gosto ainda mais doce. O restaurante é um dos preferidos do cantautor, que mora ali mesmo ao lado e lá se senta com a família pelo menos uma vez por semana. Como contraponto à vida quase nómada de alguém que vive da música, para Miguel Araújo a rotina é como um bálsamo. Todos os dias corre - "é a única atividade que faço, à parte um mergulho nos raros dias em que está bom para isso; sou péssimo em desportos de motricidade" -, leva os miúdos à escola (tem dois rapazes, de 3 e 5 anos, e uma rapariga a chegar por um destes dias), brinca com eles quando voltam, deita-os antes de ir, ele próprio bem cedo, para a cama. "Levanto-me sempre cedo - mesmo nos meus tempos de boémia era assim - e tenho uma vida doméstica banal e rotineira", confessa no tom calmo e ritmado que caracteriza as suas canções.
A verdade é que não leva a vida pacata e regrada que descreve. Mas vai levando, como diz Chico Buarque, uma das suas referências musicais. E se conseguiu abrandar o ritmo frenético em que andava quando acumulava a carreira individual com a participação nos Azeitonas, grupo que fundou com amigos e do qual saiu se separou em 2016, além dos 28 concertos esgotados com António Zambujo nos Coliseus, não há um tempo em que Miguel Araújo realmente desligue.
"Estou sempre a escrever e a compor, faço-o inconscientemente, e mesmo quando não estou com o telemóvel e a guitarra na mão, encontro-me a criar pedacinhos de música na cabeça." O telemóvel, porque é nele que escreve as letras das canções - "nunca escrevi nada à mão, e se o fizesse em papel gastaria milhares de folhas, porque estou sempre a apagar e a rescrever, a aperfeiçoar - ou grava melodias e frases se a inspiração o apanha num momento de corrida ou em viagem, por exemplo. Diz-me que as músicas não lhe entram na cabeça organizadas e prontas, às vezes até começa por estranhá-las - "vou cantarolando na parte de trás da minha mente até me habituar" -, mas nunca se mete no caminho. "Deixo-as serem como elas querem ser, não imponho os meus gostos às minhas músicas, porque às vezes elas são tão simples que parece que nem fizemos nada, são só dois acordes, e se eu me metesse no meio ia complicar, ia pensar que sou um compositor profissional e por isso não posso fazer músicas com dois acordes. Mas posso, é claro."
Como cliente habitual, Miguel quase nem precisa de olhar para a lista para saber o que vai comer e eu sigo-lhe o bom conselho: um misto de peixes em sashimi e sushi, água para aplacar o calor e cerveja para mim - um fino, à moda do Porto. Conta-me que a parte de se sentar e organizar o que vai juntando de composição e melodia e pedaços de letras, lhe traz uma certa preguiça, pelo que precisa de um deadline para a cumprir. "Só acabo mesmo em cima da hora, até lá está tudo em aberto para ir melhorando, mudando qualquer coisa. Tenho sempre músicas incompletas, ideiazinhas, e só na fase antes de gravar é que perco umas tardes nisso, mas normalmente quando me sento as pontas soltas já se resolveram todas sozinhas. A última coisa que fiz foi para uma série do Nuno Markl que aí vem, o 1986, que acabei no comboio para Lisboa." A série, que deve estrear-se em janeiro, passa-se na época das eleições quentes entre Freitas do Amaral e Mário Soares e Miguel Araújo foi convidado para escrever a canção de um casal apoiante de Freitas.
Ninguém diria que canções que se ouve cantarolar por toda a parte mal são lançadas são por vezes tão caprichosas. Mas é essa a realidade de quem canta temas do dia-a-dia com poesia. Miguel diz-se "um elo na longa cadeia de música deste género" mas identifica claramente aqueles que o influenciaram neste caminho e que vão de Chico a João Monge, Carlos Tê ou Bernie Taupin, o letrista de Elton John, ou mesmo Dylon em algum do seu trabalho. "Sou um superapaixonado da canção urbana. É a minha música e a minha poesia. Eu não sou um ávido consumidor de poesia sem ser através dessa música, nem de instrumental. O que tento fazer não é revolucionário, mas tenho um amigo que me diz que se eu não tivesse nada de novo ninguém me ouvia..."
Há um traço mais curioso: a forma como foi aceite a cantar em português, o que nem sempre é o caminho mais fácil. Reconhece que nos últimos dez anos houve uma "reconciliação com a música portuguesa, enquanto a geração que marcou os anos 1990 e início de 2000 escrevia muito mais em inglês - David Fonseca, Blind Zero, etc." Quanto a ele, se as primeiras tentativas de cantar, aos 15/16 anos, eram em inglês, entendeu rapidamente que seria como trair-se a si próprio cantar numa língua que não a sua. "É mais fácil e natural cantar em inglês, trabalhar métricas e rimas, fazer uso de uma quantidade de referências. E para a minha geração, cantar em português é quase um embaraço que tem de se vencer, porque 90% da música que ouvimos vem dos Estados Unidos, do Reino Unido... Mesmo eu, quando faço primeiro a melodia e a gravo no telemóvel, a cantarolar qualquer coisa aleatória, quase sempre são palavras soltas em inglês. Depois acrescento uma camada em português, em esforço."
E ainda que diga que a sua música "não é idiomática ou tipicamente portuguesa, como a dos Madredeus, do Zambujo, da Carminho ou da Ana Moura - a minha é muito mais anglo-saxónica com letra em português" - tem enchido salas mesmo lá fora e recebido elogios dos mais insuspeitos e inesperados fãs. "Já fui ao Brasil e correu superbem, fui a Macau, a Londres, a Genebra, ao Luxemburgo, à Galiza e as plateias eram sempre quase cheias por emigrantes portugueses - que hoje são diferentes, dos de outros anos, mantêm o interesse pelo que se passa no seu país, acompanham, seguem. Então, quando dou concertos fora é como tocar em Torres Novas ou Viana do Castelo." Mas também entre os estrangeiros "ao contrário das minhas teorias", tem clientes. "No Rio de Janeiro, veio um casal de brasileiros falar comigo, com um bebé ao colo, que tinha vindo de propósito de uma terra que ficava a mais de mil quilómetros porque eu era o cantor preferido deles. E quando agora toquei no Barbican Centre, em Londres, recebi uma mensagem da primeira mulher do Bob Marley que disse que tinha adorado e elogiou-me imenso. Foi espetacular!"
Momentos assim, em que se permite alguma vaidade, são raros e quando me diz que quer em Londres quer no Brasil ficaram alinhavados outros projetos já retomou a serenidade. Enquanto avançamos no prato de peixe fresquíssimo e muito bem preparado, pergunto-lhe pelo projeto com António Zambujo e responde-me com a casualidade que parece marcar toda sua carreira.
"Isso não foi bem um projeto... somos amigos há muitos anos, ainda nenhum de nós tinha lançado nada sequer, e estávamos a jantar depois do meu concerto no Coliseu em 2014, quando a minha mulher me desafiou a fazer uma versão com menos parafernália, só voz e guitarra, e o Zambujo disse, "olha, eu junto-me". Depois pensamos no Coliseu e foi uma loucura que resultou superbem mas podia ter corrido mal, porque ainda antes do primeiro espetáculo já tínhamos 17 datas esgotadas... Deram-nos um cheque em branco."
Conta-me que conheceu António Zambujo no primeiro ano do espetáculo de La Féria Amália, ali em 1999/2000. "Ele estava no elenco e eu tinha ido a Lisboa com uns amigos e calhou encontrarmo-nos no Berimbar, na Lapa, onde os fadistas e a malta da música se junta para umas noitadas. Juntou-se as mesas, estivemos na guitarrada, depois convidaram-nos para ir ver a peça e quando eles levaram o espetáculo para o Porto nós andámos tipo cicerones. Depois o Zambujo lançou um disco convencional de fado, eu fiz os Azeitonas, as vidas foram andando mas sempre ficámos amigos e de vez em quando juntávamo-nos a cantar - ele foi a primeira pessoa para quem escrevi, a primeira canção foi o Reader"s Digest, que lhe mostrei estávamos nós num bar, eu ainda não tinha planos de gravar a solo e nos Azeitonas aquilo não encaixava bem; ele gostou e pediu-me para gravar. E eu fiquei todo honrado!"
Se por um lado Miguel Araújo não é pessoa que goste especialmente de falar de si - sem dúvida que não como a última Coca-Cola do deserto, nem sequer uma das derradeiras paletes -, também entende que isso faz parte do caminho que escolheu empenha-se em dar o melhor até nesta vertente. "Por muito tempo, não quis fazê-lo mas em 2012, aos 34 anos, resolvi essa questão da exposição, quando lancei o primeiro disco em nome próprio. Quem não se quer expor, segue outra vida, porque aqui é preciso ser absolutamente honesto com o público, não ir com reservas para concertos, gravações ou entrevistas. A razão de ser deste trabalho é partilhar o meu íntimo com os outros. Lançar as minhas músicas, tocadas e cantadas por mim com o nome próprio é a maior exposição que há e todas as minhas canções são bastante autobiográficas, porque mesmo quando não são sobre mim, são cantadas pelo meu ponto de vista."
Diz que nenhum dos seus discos foi particularmente bem recebido, enquanto obra conjunta, mas que isso é sinal dos tempos - as pessoas recebem bem as músicas mas nem fazem ideia de qual dos três álbuns são. Pelo que já decidiu começar a trabalhar cada música por si - mesmo para não sujeitar todos os temas de um disco à descrição da crítica de "uma palavra que cabe numa casca de noz". "Já ninguém tem tempo para ouvir um disco inteiro por isso já não me interessa lançar 12 músicas ao mesmo tempo, até porque ao fazê-lo negligencia-se sempre uma ou outra."
De resto, diz que nunca ganhou "dinheiro com um disco - dantes fazia-se concertos para promover a venda de discos, agora faz-se discos para promover a venda de concertos" - e que as suas fontes de rendimento são os concertos e os direitos de autor. Quanto à internet, "é um caminho que está a começar, mas acho que o futuro é risonho e a remuneração pela internet vai ser uma realidade." Quanto tempo pode demorar não sabe, mas não o preocupa isso - ainda tenho saúde e facilidade de andar na estrada, gosto e às vezes até vou com a família e tudo" -, como não encontra maior instabilidade no que faz do que noutras carreiras. "Já não há empregos estáveis e o meu ainda é dos melhores, porque posso sempre pegar na guitarra e ir para uma estação qualquer tocar, porque isto não é um emprego, é trabalho. E qualquer coisa, o meu cursinho ainda está válido."
Miguel tirou Gestão, mas nunca lhe passou realmente pela cabeça seguir essa carreira. "Mesmo que ganhasse mais, teria uma vida pior porque não estaria realizado. Uma vida só se realiza se a pessoa fizer aquilo em que é mais útil e para mim isso é a música." E se não seguiu essa via na escola, a veia de autodidata desenvolveu-a na perfeição e agora, "se fosse ter aulas de teoria musical ia estragar tudo". Por incrível que pareça, Miguel Araújo nem sequer sabe ler e escrever música - "eu sei o que estou a fazer, sei os acordes, toco o João Martins, o brilhante arranjador que trabalha comigo, escreve e dirige aquilo tudo". Teve uma única aula de baixo, depois de receber o instrumento dos pais, a conselho do tio, que tinha uma banda (a única pessoa da família com vocação artística) e lhe reconheceu valor. "Tinha uns 14 anos e logo a seguir parti a mão num acidente. Foi Deus Nosso Senhor a tirar-me dos maus caminhos", ri-se. Compensa a falta de teoria com a certeza de ser esta a sua verdadeira vocação - a visão de missão inevitável vem um pouco por influência da mulher, arquiteta de formação e artista plástica de profissão, que conhece desde sempre e com quem está há nove anos, e que faz cenários de palco para espetáculos. "Aquela coisa pela qual se está disposto a sofrer o pior - ir para o palco era horroroso para mim até há três anos, tinha verdadeiro pânico. Por mais nada me sujeitaria a isso senão pela música, que me puxou para o centro dela desde os 11 anos". O que mudou? Começou a exigir mais de si também enquanto performer. E o momento-chave foi a primeira eliminatória de Salvador Sobral no Festival da Canção: "Vê-lo naquele ambiente meio kitsch meio gozão e de repente, ao subir ao palco, entregar-se totalmente inspirou-me. Ele é incrível e conseguiu a vitória da música sobre o gozo. E ouvi-lo foi um reset para mim. Eu toco muito melhor do que canto, mas escondia isso, agora toco mais assumidamente, ando na corda bamba das minhas capacidades."
Já com o almoço quase no fim, pergunto-lhe com quem gostaria de partilhar o palco. Diz-me que com Rui Veloso, com António Zambujo, com Carminho, com Marcelo Camelo. A verdade é que já cantou com todos os seus heróis. E se não tivesse acontecido, não seria por sua iniciativa que poderia realizar-se - a timidez falaria mais alto. "Se eles não fossem meus amigos, nunca o proporia. Eu era incapaz de convidar alguém para cantar comigo." Quanto a palcos, também já realizou os seus sonhos de tocar nos coliseus e no Rio de Janeiro. A verdade é que não planeia muito, também aqui. "Acho que não é muito saudável fazer planos e trabalhar em função de uma consequência, eu prefiro seguir o caminho e ver onde me leva."
E se pelo caminho alguém lhe fizer um convite ou pedir para usar a sua música? Sente-se honrado. Mesmo que seja para construir uma paródia, como aconteceu numa das canções da Comercial. "E dou-me bem com a malta, e o Vasco Palmeirim pediu-me para o ajudar a tocar o Anda Comigo Ver os Aviões, que é um bocado difícil, para uma sátira às promoções do Pingo Doce, e fiz isso, mas a letra é toda dele, ele escreve bem, tem imenso jeito."
Apesar de tudo, confessa-me já de saída, permite-se alguns sonhos - desde que concretizáveis. Como o de ter um piano em casa. Comprou o que usou nos concertos do Coliseu e é sentado à frente dele que hoje passa os dias, a treinar. "É uma coisa que me diverte. Já tocava, mas estou a treinar, a passar os acordes da guitarra para o piano, e quanto mais treino mais naturalmente o faço." Veremos em breve para onde o levam esses novos acordes.
Wish
2 menu sushi-sashimi
1 imperial
1 água
1 café
1 descafeinado
Total: 34,5 euros