Equipa africana, treinador africano: o Senegal resiste a uma tendência

Aliou Cissé é um dos dois africanos que estão à frente de uma seleção no Mundial e o único com hipótese de chegar aos oitavos. É também o mais mal pago do torneio
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É dececionante que, num desporto cheio de jogadores africanos ao mais alto nível, haja apenas dois treinadores desse continente no Campeonato do Mundo: Aliou Cissé, do Senegal, e Nabil Maaloul, da Tunísia.

Apenas a equipa de Cissé tem sido uma força até agora, com o Senegal a derrotar a Polónia, por 2-1, na semana passada e depois a empatar 2- 2 com o Japão no domingo à noite para continuar a partilhar a liderança do Grupo H.

O presidente do Senegal, Macky Sall, que assistiu ao jogo com a Polónia em Moscovo, já voltou para casa. Mas maiores oportunidades aguardam o Senegal, começando com um último jogo da fase de grupos contra a Colômbia, hoje, às 15.00. Se os Leões de Teranga, como a equipa é chamada, ganharem ou empatarem têm a qualificação garantida para os oitavos-de-final.

"O mais importante agora é recuperar, porque vamos ter um combate difícil com a Colômbia", disse Cissé depois do jogo de domingo. "Mas nós temos o nosso destino nas mãos, na verdade, nos nossos próprios pés."

Três nações africanas chegaram aos quartos-de-final do Campeonato do Mundo: Camarões em 1990, Senegal em 2002 e Gana em 2010. Nenhuma delas foi treinada por africanos, mas Cissé foi o capitão daquela inspiradora equipa do Senegal há 16 anos que perturbou a campeã em exercício, a França, no seu jogo de abertura, e que cavalgou a onda a partir daí.

Após uma carreira de jogador feita em grande parte em França e Inglaterra, Cissé desenvolveu metodicamente as suas capacidades de treinador, dirigindo o programa para sub-23 do Senegal durante dois anos e reconstruindo depois a formação e a bonomia da equipa nacional após ter assumido o cargo de selecionador em 2015.

Na Rússia, os seus jogadores dançaram juntos após derrotar a Polónia, depois cantaram e dançaram juntos no início da sessão de treino em Yekaterinburgo no sábado à noite. O guarda-redes Khadim N'Diaye liderou o grupo no que parecia ser uma versão muito mais alegre do ameaçador haka apresentado pelos All Blacks, a equipa de râguebi da Nova Zelândia.

A observar de perto, com os braços cruzados e uma expressão divertida no rosto, estava Cissé, cuja equipa perdeu apenas duas vezes nos seus três anos ao comando. "Queremos seguir o mesmo caminho que a geração de 2002 seguiu", disse. "Eu acho que são duas gerações bastante diferentes em termos de desenvolvimento, formação e mentalidade. Mas são duas grandes gerações."

Elas são as únicas gerações do Senegal que se qualificaram para o Mundial, mas não houve nenhuma dança no campo no domingo contra o Japão, apesar do caloroso reconhecimento do pequeno grupo de adeptos do Senegal, que manteve a música e a animação apesar da tensão do jogo que acabou num empate. "Hoje não foi a grande equipa do Senegal que temos visto, tenho de o dizer francamente ", confessou Cissé depois. "Por isso estamos um pouco desapontados, mas temos de nos manter humildes e não subestimar a equipa japonesa".

A equipa do Senegal de 2002, treinada pelo francês Bruno Metsu, era baseada quase inteiramente em França, o ex-colonizador do Senegal, mas o grupo de 2018 é mais variado. N"Diaye joga num clube africano, o Horoya AC, da Guiné. Os restantes jogadores estão a jogar na Europa ou na Turquia, alguns em clubes verdadeiramente de elite, como o Nápoles da Serie A de Itália, ou o Liverpool, onde Mané fez parte de um grupo que marcou a um ritmo vertiginoso.

O mais mal pago

Segundo duas pesquisas, Cissé é o treinador que menos recebe entre os 32 selecionadores presentes no Campeonato do Mundo, cerca de 200 mil euros por ano, o que representa uma grande diferença em relação ao salário de 3,8 milhões de euros do treinador alemão Joachim Löw e está bem distante dos 1,5 milhões de euros anuais que recebe o treinador mais bem pago de uma equipa africana - Héctor Cúper, o argentino que dirige o Egipto, país que já foi eliminado na Rússia.

"O diferencial de salários é bastante embaraçoso, mas muitos dirigentes das federações africanas acreditam que pagar mais aos europeus e sul-americanos do que aos africanos é a única maneira de os atrair", disse Peter Alegi, professor de história africana na Universidade do Estado de Michigan que tem escrito muito sobre o futebol africano. "Talvez os salários mais altos para estrangeiros brancos introduzam também uma sensação de poder e estatuto entre as autoridades africanas."

Mas há também um elemento de preconceito inerente, uma sensação de que os treinadores europeus ou sul-americanos são intrinsecamente superiores, mesmo que um treinador que partilhe as origens dos seus jogadores possa ter mais condições de chegar até eles.

"Cissé demonstrou a eficácia dos treinadores locais em África se lhes for dado tempo e oportunidade para terem sucesso", disse Alegi. "Infelizmente, muitas vezes os dirigentes das federações, de vistas curtas, procuram um europeu branco como forma de se protegerem no caso de as coisas correrem mal em campo."

"Os treinadores locais são pouco respeitados em África", disse Cissé numa entrevista recente ao L'Équipe, o diário desportivo francês. "Não somos valorizados. Keshi passou por isso. Mas somos capazes de pensar, motivar uma equipa, ter um plano para o jogo. Não é porque eu ter rastas que não sou bom. Isso é um preconceito. Podem dizer-me que sou o pior treinador do futebol senegalês, mas sou seguramente quem mais tem vontade de ganhar".

Contra a Colômbia, a vitória não será necessária, mas à luz de como a Colômbia devastou a Polónia na noite de domingo, vencendo por 3-0, a equipa de Cissé provavelmente precisará de voltar a estar na sua melhor forma. Se o conseguir, tem a próxima ronda à vista.

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