Episódio 34. Enfim, os jornais apanharam-no

Pela mesma razão que Elizabeth Taylor não assistiu ao funeral de Richard Burton - "se eu fosse ao enterro de todos os meus ex-maridos não fazia outra coisa" -, os jornais não acudiam a todos os desvarios de Donald Trump. Mas, desta vez, apanharam-no
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Lisboa, 1 de setembro, 15.10 Os dois conspiradores internacionais contra os absurdos do mundo - só isso, não descobrir a cura do paludismo nem atardar o aquecimento global, demasiado para eles -, o embaixador reformado Pedro Leite de Noronha e o conselheiro da Embaixada de França Cristóvão Loison estavam de garganta apertada. Saíram do restaurante do Bairro Alto, onde os telemóveis os tinham informado que um dos seus pequenos objetivos estava a caminho de ser resolvido. Dizia, nesse dia, o melhor jornal do mundo: "Trump acabou?"

Nem era uma notícia, era uma pergunta. E tratava só da possibilidade de Donald Trump - um homem excessivo e demasiado menor - deixar de ser presidente da América. O tamanho da pergunta era a enormidade de ele ser presidente da América. Deixar de o ser era só um espanto no meio da admiração maior, sê-lo.

Era pouco o que anunciava a manchete do jornal The New York Times e, no entanto, empolgava-os. O mundo estava assim, já se contentava com pouco. O que demonstrava a importância do trabalho de gente, como Noronha e Loison, que tentava limpar, como às nódoas, a mancha de absurdo espalhada pelo mundo. Os melhores diplomatas eram, naqueles dias, tão vitais como os homens do lixo.

Noronha e Loison desciam a Calçada do Duque, de salto em salto pelos degraus largos. Às vezes paravam, como garotos que eram pelo que lhes ia lá dentro, e davam-se palmadas nas costas. À frente da Estação do Rossio, olharam para a entrada do hotel Avenida Palace. Novo abraço. Há mês e meio, fora lá que se transmitiu a mensagem que o presidente Emmanuel Macron quis fazer chegar ao governo português.

No bar do hotel, o emissário Loison dissera, então: "Trump vai expulsar a ONU de Nova Iorque, não sabemos quando, mas em breve." E Noronha recebera um recado suplementar: Paris veria com bons olhos Lisboa candidatar-se a substituir Nova Iorque... Se as duas hipóteses eram extraordinárias, não menos o era o mistério: o que levaria o presidente americano a tão estranha intervenção? O facto é que as hipóteses se verificaram, não logo, mas poucas semanas depois - e o mistério permanecera. Tanto Loison como Noronha desconfiavam de que Macron tivesse preparado uma armadilha a Trump.

A edição do The New York Times levantava uma ponta do mistério. Sugeria que o gabarolas tinha caído na esparrela... Ainda no restaurante do Bairro Alto, os dois amigos leram a reportagem do jornal. A ocupação da sede das Nações Unidas em Manhattan tinha sido antecedida de um tweet de Donald Trump - uma espécie de Diário da República americano, mas com consequências imperativas mais imediatas. Dizia o tweet, referindo-se à pretendida não subjugação às leis americanas do Palácio de Vidro e outros prédios e terreno da ONU, nas margens do East River: "Extraterritorialidade, o tanas!" E a sede da ONU foi ocupada pela tropa da Guarda Nacional, na mesma tarde do tweet.

Os jornais americanos não se terem ocupado de imediato das causas de tão grave violação ao direito internacional derivava do mesmo cálculo que levara Elizabeth Taylor a não ter assistido ao funeral de Richard Burton: "Se eu fosse ao enterro de todos os meus ex-maridos não fazia outra coisa." Os jornais não podiam acudir a todos os desvarios do 45.º presidente dos EUA.

Apesar disso quase todos os jornais e televisões deram notícia da ocupação. O HuffPost indignou-se com o despropósito da expulsão das Nações Unidas, com a mesma veemência que iria ter, duas semanas depois, com a altura dos saltos dos sapatos de Melania Trump, quando ela desembarcou no Texas arrasado pelo ciclone Harvey. E a Fox aplaudiu a ida da ONU para Lisboa: "Essa deslocalização para Espanha não faz concorrência à América nem traz desemprego aos americanos."

A curiosidade mitigada desprezava um facto histórico: há um guardião da democracia que se chama jornalismo americano. E, mais uma vez, o facto impôs-se. Um jornalista passou pela ainda chamada United Nations Plaza e reparou em guindastes à volta do abandonado Palácio de Vidro. Todos tinham uma sigla comercial I & I - Real Estate Company. Aquele "Eu & Eu - Empresa Imobiliária" evocou-lhe uma provável maluquice. Daí a Donald Trump nem precisou de um passo.

O jornalista era do The New York Times e o jornal deu-lhe toda a brida. Na verdade, a I & I não era de Donald Trump, era de Don Jr. e Eric Trump. Em janeiro, antes de tomar posse, o presidente passara o controlo "total e completo" dos seus negócios imobiliários para os seus dois filhos mais velhos. Para os mal-intencionados, Trump fizera questão de garantir numa conferência de imprensa: "Eles não vão discutir negócios comigo."

Felizmente, o The New York Times era mal-intencionado e prometia para o dia seguinte revelações ainda mais comprometedoras e já sem ponto de interrogação.

Amanhã, último episódio. Acompanhe aqui os episódios do Folhetim de Verão

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