Episódio 29. Super soft power ou brandos costumes
Lisboa, 27 de agosto, 11.00 O governo português ficou atento a sinais vindos do outro lado da Mancha. Passara a semana num frenesim com a Grã-Bretanha, talvez com precedente só igual ao da crise do Mapa Cor-de-Rosa. Mas logo dois dias depois do encontro de Marcelo com Francisco Louçã - retirado da liderança do Bloco de Esquerda mas eminência emérita - surgiu uma luzinha. Bruxuleante como os faróis na neblina Dover, mas luzinha: na edição de domingo, 27, o jornal The Daily Telegraph revelava que o ministro-sombra trabalhista encarregado do brexit, Sir Keir Starmer, "tinha planos para manter o Reino Unido no mercado comum europeu indefinidamente."
O jornal fizera campanha a favor do brexit e indignava-se com os trabalhistas. Na verdade, aquela posição do Labour não era uma vontade para um segundo referendo, correspondia somente à defesa de um brexit suave... Mas os pró-brexit duros, de corte rápido com a Europa, suspeitavam que era só para ganhar tempo. O jornal prevenia os trabalhistas: arriscavam-se a perder os seus votantes pró-brexit...
Ora, a confirmar-se aquela mudança do Labour, a ter havido raciocínio eleitoralista, seria o oposto. Afastando-se da política de negociações do governo de Theresa May, a razão mais natural para a semiviragem de Jeremy Corbyn seria a de alargar a influência no eleitorado jovem, muito mais pró-europeu do que as gerações anteriores. Nas legislativas de junho, os locais onde os trabalhistas mais subiram foram aqueles onde, no ano anterior, no referendo, se tinha votado pela permanência na UE.
Em Portugal, esta ligeira novidade foi seguida por frenéticos sms entre Belém e São Bento. "Sabe se Louçã já partiu para Londres?", perguntou Marcelo. Ele via na notícia do Telegraph um dedinho da conversa que tivera com o bloquista. É certo que Louçã não se comprometera em falar com Corbyn, "mas senti que ele marchava connosco", dissera o Presidente, no relato da reunião que fez a Costa. No domingo, sobre a ida de Louçã a Londres, o primeiro-ministro foi evasivo: "Não sei..." Afinal, em democracia, o governo não sabe tudo da vida dos cidadãos, sobretudo políticos, e, semissobretudo, se semiadversários.
Sempre em sms, Costa lembrou a Marcelo que Corbyn fora surpreendentemente eleito líder do partido, em 2015, por aquilo que na altura foi explicado por uma massiva entrada de trotskistas no Labour. "Se há gente que tem os canais internacionais oleados são eles...", sugeriu o primeiro-ministro.
Marcelo não era dos que guardavam pormenores gostosos para as suas Memórias - era mais forte do que ele, contava-os logo -, largou os sms e telefonou a Costa. "Prefiro de viva voz, vou dizer-lhe como convenci o Francisco..." E Marcelo disse que contou a Louçã a história de um grupo trotskista, na América Central, anos 50, em plena Guerra Fria e sem perspetivas de revolução mundial, quanto mais permanente... Então, o grupo recebeu ordens do seu chefe, um tal Posadas, para ir para as montanhas. Anos 50, os discos voadores estavam na moda. E a explicação da nova tática política era esta: se chegavam extraterrestres era porque o desenvolvimento científico era grande; se o era, era porque eram os planetas socialistas. Logo, eram os camaradas certos a contactar.
"Claro que o Francisco sabia da história, mas eu contei-lha para tirarmos uma lição juntos", disse Marcelo a Costa. Claro que Louçã conhecia a história mas no que estava a pensar era que os posadistas eram falsos trotskistas. Entretanto, o Presidente continuou a apresentar a sua lógica ao bloquista: os revolucionários centro-americanos subiram às montanhas na esperança de encontrar um proletariado culto de extraterrestres; mas os trabalhistas, 70 anos depois, cortaram o fio umbilical com seus aliados naturais e vizinhos, as forças progressistas europeias! "Francisco, disse-lhe eu, isto é antirrevolucionário!" Costa perguntou: "O Presidente disse-lhe mesmo isso?" E Marcelo: "Disse. E acho que o convenci."
Talvez, então, a notícia de domingo no Telegraph tivesse alguma coisa que ver com as manobras portuguesas contra os absurdos na política internacional. Depois de atenuar os efeitos de Trump na expulsão da sede da ONU de Nova Iorque, o Palácio das Necessidades fizera uma task force para ajudar o Reino Unido a não ir embora. Como o apetite vem com o comer, o ministro Santos Silva incitou a task force a ser ambiciosa. O gabinete em que se reunia encheu-se de relatórios e de mapas. À lupa, procuravam-se conflitos que pudessem ser resolvidos pela mera candura da conversa portuguesa.
Os portugueses de antanho, que fizeram o mundo enfim redondo, tinham herdeiros dignos que andavam a limar as arestas do globo terrestre. Super soft power, antigamente dizia-se brandos costumes, era a tática natural.
Continua amanhã. Acompanhe aqui os episódios do Folhetim de Verão