Episódio 26. Há crise no mundo? Portugal resolve
Lisboa, 21 de agosto, 16.00 Pedro Leite de Noronha tinha um blogue, O Terceiro Homem, como o título do grande filme. Mas porquê essa homenagem? Ora, ora, porque era um filme inglês e Noronha foi embaixador em Londres. Porque se passava em Viena, outro seu posto diplomático. Porque o filme tinha a Alida Valli, a primeira das divas do cinema italiano, e Noronha estava agradecido a quem anunciara as Silvanas Manganos e Monicas Vittis... Porque o principal personagem se chamava Martins. Porque era da Europa ferida, finda a guerra, que se falava...
Porque a história era escrita por Graham Greene, que dava um piscar de olho ao espião Kim Philby, com quem o escritor trabalhara em Lisboa. Ou porque, dizia Noronha - que gostava de desarmar a petulância -, O Terceiro Homem era o único filme cuja música podia ser escrita por palavras: "Tinta tem, tem-tem, tem-tem, tinta tem..." Alguns leitores não percebiam, mas Noronha estava-se tão, tão nas tintas para isso.
No blogue, o embaixador contara que era membro, um dos raros estrangeiros, de um seleto clube londrino. As atividades resumiam-se a um jantar anual onde se lia uma comunicação sobre Joseph William Winslet (1755-1855). Num dos jantares, o discurso lembrou o Abade Faria, o goês precursor do hipnotismo na Europa e personagem de O Conde de Monte Cristo, que dissera: "Devo tudo a Winslet." Noutro, revelou-se que foi J.W. Winslet quem deu a Livingstone os mapas dos sertanejos luso--angolanos Pedro Baptista e Amaro José, que meio século antes do doutor escocês haviam feito a primeira travessia da África Central.
E, apesar disso, o mistério Winslet: nem uma página na Wikipédia! Não fosse o clube londrino e o seu jantar anual, um cometa que iluminou um século ficaria recordado, e só, como tetravô da atriz do Titanic. Todo o blogue de Noronha era uma espécie de clube londrino resgatando memórias. O essencial do blogue era o Clube dos Amigos de Portugal, onde se fazia de conta que se inventava e, entretanto, ia-se mostrando ao mundo como o país era admirável. No fundo, o mesmo que Noronha, na vida real, fazia nas últimas semanas.
Depois da reunião secreta à vista dos turistas de Belém, o embaixador passou à nova aventura, o combate ao brexit. No blogue, postou um artigo do jornal The Guardian sobre o Ministério do Interior que enviou "por erro" cem cartas de expulsão a cidadãos da UE, cientistas, economistas... Nessa noite, Noronha foi à SIC comentar o assunto: "Não sei se o erro foi intencional, sei é que há um desarranjo oficial britânico acerca do brexit."
No Twitter, ele escreveu: "Há mar e mar há ir e voltar, disse Alexandre O"Neill português de origem irlandesa que antes de haver Twitter disse o que fazer com o brexit." E juntou outro tweet: "Um tolo escreve brexit, um tolo assanhado continua a escrever brexit e um homem sensato escreve tixerb." Acabara de inventar o hashtag #BrexitTixerb, que iria tornar-se viral.
Entretanto, Noronha foi ao Palácio das Necessidades para dar conta da sequela da mudança da sede da ONU. Disse ao ministro Santos Silva, começando pelo princípio: "Há um mês, um ou dois dias depois de ter estado cá, fui a uma festa da embaixadora britânica..." E contou o que lhe pareceu ter sido um apelo de Kirsty Hayes para que o aliado Portugal os ajudasse a desistirem do brexit... "Ainda pensei ter ouvido mal", disse Pedro Leite de Noronha.
"Não ouviste, não", cortou Santos Silva. "Lembras-te da crise dos mastros?" Noronha fez que sim. A manchete de El Mundo, o pretexto logo agarrado pela oposição e a cabala: Portugal teria decidido só ter 181 mastros na nova sede da ONU, só para expulsar os americanos... Sendo o 184.º ou 185.º da lista alfabética, os USA ficavam de fora...
Logo se viu que afinal havia mastros para toda gente. Mas ainda estava o ridículo equívoco a pairar e Santos Silva recebeu um telefonema da embaixadora Hayes: "Caro ministro, eu sei que United Kingdom é o 182.º membro da ONU, já dentro da exclusão da falta de mastros, mas não tenho a mais leve dúvida de que o nosso mais antigo aliado é o nosso melhor aliado." Riram-se ambos, então.
Também nas Necessidades se davam conta de que Londres estava mesmo a precisar de afagos, carinho, atenção. E Noronha aproveitou para encadear a novidade: "Ele voltou a atacar...", disse, sobre o diplomata francês "amigo dos Macron" que, havia um mês, lhe dera o recado para passar ao governo português - tudo verdade, como se confirmou. "Pois ele esteve outra vez com o Macron e este continua a apostar em nós, agora sobre o brexit..."
A diplomacia é a arte de pensar duas vezes antes de não fazer nada, mas as Necessidades estavam decididas a contrariar esse hábito. Combinaram uma task force. "O melhor é começarmos a pensar em grande, outras regiões onde o mundo precise de nós...", disse o ministro.
Continua amanhã. Acompanhe aqui os episódios do Folhetim de Verão