Episódio 17. Costa é norte-coreano, diz o El Mundo
Lisboa, 16 de agosto, 10.00. A manchete causou alarme em Lisboa: "Portugal quer expulsar os EUA da ONU", dizia o jornal espanhol El Mundo. O momento não era bom para aquele atiçar, dias antes o presidente americano Donald Trump tinha prometido "fogo e fúria" à Coreia do Norte, tinha invadido e ocupado a sede da ONU em Nova Iorque e tinha sugerido "uma possível opção militar" na Venezuela. António Costa meteu-se pelos corredores de São Bento à procura da sua chefe de gabinete: "Sabe se a Ana Gomes fez alguma declaração a meter-se com o Trump?"
Rita Faden, que tinha visto o jornal espanhol nas mãos do primeiro-ministro, tranquilizou-o: "Então, não reparou em quem assina o artigo? Temos o Sebastião Pereira de volta..." Talvez tenha sido por isso que Costa fora buscar uma diplomata para chefe de gabinete, para ter por perto alguém ainda mais plácido do que ele próprio. Costa regressou ao gabinete convencido de que Lisboa não seria bombardeada.
Aquele dia era aniversário da morte de Diogo Ribeiro - mas nem o El Mundo nem o primeiro-ministro português relacionaram a manchete com a data. Ela era longínqua, 16 de agosto de 1533, o que talvez explicasse tudo: quando dois países têm história tão íntima e antiga há miasmas que vão ressuscitando. Diogo Ribeiro, ou Diego Ribero, foi um daqueles ibéricos de Quinhentos, como Fernão de Magalhães, que sabiam ir longe mas se atrapalhavam na fronteira mais próxima. Nasceu português e serviu a Espanha. Foi o cartógrafo do primeiro mapa-múndi a sério. A disputa por Ribeiro ou por Ribero é mais uma que ressuscita o picar entre os dois países vizinhos, um contra o outro. Neste 16 de agosto, talvez tenha acontecido, mesmo sem ninguém se dar conta, mais um miasma...
A Espanha andava preocupada com a sua unidade, o referendo catalão podia ser uma caixa de Pandora. Desagradava-lhe a pacatez política portuguesa que até amansara os seus esquerdistas, enquanto o Podemos continuava a marrar com pontas afiadas. E Madrid, diga-se, não estava a gostar do protagonismo luso, ao aparecer como solução da crise da ONU. As relações eram boas, mas, entre vizinhos, um que quisesse - e Portugal queria - duplicar a sua plataforma marítima estava a pedir miasmas.
No artigo escrevia-se que Costa apresentara o lugar da nova sede das Nações Unidas. E que ele dissera que até os mastros das bandeiras dos países membros da ONU já estavam erguidos. O jornalista espanhol decidiu, então, ir ao local, o Rossio dos Olivais, ao lado do Meo Arena, e pôs-se a contar os mastros erguidos: 181. Recontou-os: 181.
Depois, o repórter socorreu-se do Código das Nações Unidas. E citou o artigo do Protocolo, ponto 3 - Disposições das Bandeiras: "Todas as bandeiras devem ser hasteadas por ordem alfabética, em inglês, do nome dos países que as representam, a partir da esquerda." O repórter fez contas: havia 193 membros da ONU; e mastros, ali, 181; logo, sobravam 12 bandeiras.
Sebastião consultou a lista dos países membros, em inglês. Do último, 193.º (Zimbabwe) para trás. E em 185.º lugar - antes, portanto, de ter direito a um dos 181 mastros! - estavam United States of America... Era notório que os portugueses empurravam os americanos borda fora... António Costa era um Kim Jong-un, só que não rapava o cabelo nos temporais! O jornal de Madrid concluiu no tal título daquela manhã: "Portugal quer expulsar os EUA da ONU".
Já em junho, nos fogos de Pedrógão, o El Mundo e Sebastião Pereira tinham sido os primeiros a vislumbrar a consequência dos incêndios: "A desastrosa gestão da tragédia pode pôr fim à carreira política de António Costa". Soube-se, então, que o "Sebastião Pereira" era tão adepto de fake news que começava por falsear logo na assinatura: era um nome acabado de inventar para recados bastardos.
Explicação mais benigna do fenómeno Sebastião Pereira seria a utilização da tragédia portuguesa para aviso à política interna espanhola. No fim de semana do incêndio de Pedrógão, os socialistas do PSOE decidiam em congresso a política do líder Pedro Sánchez. Apresentar Costa como de saída ajudava a dissuadir os socialistas espanhóis de tentações de fazer uma geringonça com os esquerdistas do Podemos.
Mas isso era lá com eles, drama castelhano... Para Portugal, o episódio revelou uma quase tragédia: a inerte oposição agarrou-se ao El Mundo com sofreguidão. Um, para mostrarem que o governo não estava de pedra e cal: "Até lá fora" se dizia que Costa estava por um fio... E, dois, era a prova de que "por cá a opinião estava asfixiada", disseram múltiplos comentadores.
E eis que Sebastião Pereira voltou a atacar, agora com a lista de mastros. O lado otimista de António Costa esperava que a coisa ficasse por aí. Mas, depois de deitar um último olhar à primeira página do El Mundo, deixou escapar um trejeito de preocupação.
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