Epidemia global
O mundo está perigoso, muito perigoso. As ameaças tradicionais - ataques terroristas, ditadores maníacos e escaladas nucleares -, devastadoras em épocas passadas, permanecem pavorosas e ainda podem gerar um drama global. Mas não está aí o sinal mais assustador de todos. Pior do que o crescimento dos maus é a divisão dos bons. O principal drama da conjuntura actual é a fractura radical que se vem instalando em sucessivas sociedades democráticas. Essa é a epidemia que pode vir a sacrificar esta geração.
A Espanha vê-se polarizada face à independência da Catalunha, enquanto do outro lado do canal a Grã-Bretanha extrema-se por causa da saída da União que, apesar de muito diferente, repete a insistência emotiva num caminho com graves custos e incertezas. Em ambos os casos, toda a vida parece suspensa de um tema pontual, e a intolerância dos campos opostos indicia a dificuldade de soluções equilibradas. Os dois países preparam anos de insanável animosidade.
Estes casos europeus parecem benignos se comparados com o outro lado do Atlântico. O Brasil, com grande parte da classe política na cadeia, vê condenado pelo mesmo crime de corrupção um favorito às próximas eleições, o ex-presidente Lula da Silva. Esta situação manifesta uma sociedade ainda mais drasticamente despedaçada, sem perspectivas de solução, com qualquer caminho suscitando repúdio absoluto por larga fatia da população.
Mas o caso mais extremo está no país mais poderoso e influente. A radicalização da bissecular dicotomia entre republicanos e democratas, que se desenrola há décadas nos EUA, tomou contornos insuportáveis com a eleição de Donald Trump, rasgando o país em campos inconciliáveis. À medida que as políticas se desenvolvem, as decisões são tomadas e os ataques empolam, fica cada vez mais clara a incapacidade das elites em operar conjuntamente, condição indispensável para a identidade de uma sociedade.
O fenómeno parece uma epidemia, com muitos outros casos, menos salientes, mas igualmente graves: Polónia, Grécia, Turquia, Síria, Iraque, Iémen, Paquistão, Tailândia, Congo, Venezuela, etc. A coincidência indicia que, por baixo da variedade de circunstâncias, existe uma causa comum. De uma forma ou de outra, esses antagonismos resultam da enorme aceleração do desenvolvimento, gerada por novidades tecnológicas, geopolíticas e financeiras nas últimas décadas. Vivendo uma época intensa de progresso, as melhorias trazem consigo um clima de incerteza, desigualdade e ameaças. O medo depois explode em divergências pontuais, com pretextos bastante diferentes de região para região.
Mesmo se compreensíveis, estes casos e muitos outros manifestam uma das mais terríveis doenças sociais: uma insanável clivagem nacional. Portugal, que viveu assim na primeira metade do século XIX e princípio do século XX, tem sido ultimamente poupado a estas cisões. Mas devemos reconhecer os sintomas, para precaver o contágio.
Situações tão extremas só são irremediáveis porque ambos os lados têm a sua razão, que os adversários não conseguem reconhecer. A indignação pela cegueira da outra parte suscita a raiva que, por sua vez, cega esta facção. Sucedem-se conversas impossíveis, com cada grupo repetindo a verdade que lhe assiste, sem reconhecer os limites da sua razão. O primeiro indício é, assim, esta falta de diálogo, fundamento da própria vida social. Quando os debates públicos são mera sucessão de monólogos inflamados, a situação fecha-se.
Segundo aspecto é a prioridade da emoção sobre a racionalidade nas escolhas sociais. Os eleitores da Catalunha, por exemplo, insistiram num quadro dividido mesmo depois da fuga generalizada de empresas da região. Quando são as acções dos nacionalistas catalães a prejudicar gravemente a própria província que pretendem exaltar, é evidente que as paixões dominam o bom senso. Na Grã-Bretanha também a acumulação de custos de saída da União é ignorada pelas forças separatistas, que não admitem a catástrofe anunciada. No Brasil, EUA e tantas outras zonas pululam queixas, agravos e suspeitas, faltando análises serenas e ponderadas. Isto só pode gerar erros e opções enviesadas que, prejudicando a sociedade, aumentam os motivos de zanga.
Apesar de tudo, este não é ainda o pior presságio. O limite só se atinge quando, desesperados pelo confronto, os cidadãos duvidam do próprio sistema. Essa é a porta para o desastre, porque, por muito mau que seja o regime, como no Brasil ou na Tailândia, a alternativa é sempre o caos, como na Síria ou na Venezuela. Nunca nos podemos esquecer de que tudo o que temos e somos devemo-lo à sociedade como ela é. Pode ter muitos defeitos, mas funciona e vai satisfazendo as necessidades. Devemos reformá-la, corrigi-la, melhorá-la, por vezes profundamente, mas sempre com respeito por aquilo que está, e só através de diálogo sério e exigente. Desmantelar é fácil, mas raramente leva à construção de algo melhor. Por isso o mundo está tão perigoso.