Enxaqueca. A doença incapacitante que a sociedade desvaloriza
É muito mais do que uma simples dor de cabeça, é incapacitante e o seu impacto na vida dos doentes é (ainda) desvalorizado na sociedade. Os resultados apontam para que 80% dos portugueses que sofrem de enxaqueca sentem-se limitados na realização de tarefas do dia-a-dia e metade falta em média 3,8 dias por mês ao trabalho, diz o estudo mundial que englobou 11 mil pessoas, de 31 países, entre os quais Portugal, que vai esta quinta e sexta-feira, 15 e 16 de novembro, ser divulgado no congresso de neurologia, que se realiza no Porto.
O estudo My Migraine Voice, que teve a participação de 143 doentes portugueses, mostra bem o quanto esta doença afeta a vida pessoal e profissional de quem sofre de enxaquecas. Dos doentes com enxaqueca grave inqueridos, mais de metade, 54%, referem incompreensão por parte dos outros, 43% manifestaram sensação de impotência face à doença e 40% depressão. Quase todos os participantes (95%) relatam dificuldade em dormir, bem como a necessidade de períodos prolongados no escuro ou isolados durante uma crise de enxaqueca.
Promovido pela European Migraine Headache Alliance, o inquérito englobou doentes com pelo menos quatro crises de enxaqueca por mês nos três meses que antecederam ao estudo mundial -, sendo que quase 90% fez pelo menos um tratamento preventivo. "É um estudo relevante porque são os doentes que estão a tentar transmitir o impacto da enxaqueca para o resto da opinião pública", salienta a médica neurologista Raquel Gil-Gouveia, membro da Sociedade Portuguesa de Cefaleias. E deverão ser cerca de "100 mil portugueses" que todos os dias sofrem com enxaqueca, afirma, tendo como base um estudo de 1995.
Dos portugueses que sofrem de enxaqueca grave, metade falta em média 3,8 dias por mês ao trabalho. Do total dos inqueridos no estudo mundial, são, em média, 60% os que faltam 4,6 dias por mês ao trabalho, e a produtividade é reduzida para metade. "Depois também há o contrário, quando as pessoas têm uma crise no fim de semana e ficam felizes porque em vez de perderem um dia de trabalho perdem um dia de fim de semana", afirma a médica neurologista Raquel Gil-Gouveia. Para "pessoas com grande impacto da doença é muito difícil manterem um emprego", considera.
Mais de metade dos doentes com enxaqueca grave (54%), referem incompreensão por parte dos outros e 43% manifestaram sensação de impotência face à doença. O impacto da doença é grande no trabalho, o que depois se reflete nas outras áreas da vida do doente. "As pessoas que têm um impacto da doença importante têm uma maior taxa de divórcios, uma maior precariedade laboral, progridem menos na carreira, têm menores salários, porque naturalmente não conseguem manter a atividade num nível normal todos os dias da sua vida. Com muita frequência têm de parar aquilo que estão a fazer, não conseguem funcionar, têm de ir para a cama, não conseguem desempenhar as suas tarefas quer em termos profissionais, familiares e sociais", explica a neurologista.
"São muito frequentes nestes doentes", refere Raquel Gil-Gouveia. Para 40% dos inqueridos no estudo My Migraine Voice, a enxaqueca gera depressão. A incapacidade da doença interfere também a nível psicológico, devido aos reflexos que as crises têm nas suas vidas. "Uma pessoa que todas as semanas, pelo menos um dia, não consegue funcionar ou está a funcionar num nível muito limitado tem dificuldade depois nas relações com as pessoas que não percebem", refere Raquel Gil-Gouveia.
E a médica neurologista dá um exemplo do quanto pode ser impactante esta doença para as mulheres com filhos. "Isto é muito penalizador para as mães, por não conseguirem dar o apoio que querem aos filhos, não conseguirem ter o tempo que querem com eles, não conseguirem dar resposta quando eles precisam", enumera. "Viver com isto tudo, no emprego, o não conseguir desempenhar funções, os colegas e as chefias que, às vezes, não compreendem, na família, os amigos que, por estar sempre com dores de cabeça já não convidam. São todos aspetos que vão ter uma influência negativa na auto-estima da pessoa, no seu humor, na sua ansiedade", explica a neurologista. "A pessoa tem a sua vida toda para viver e a doença rouba tempo à sua vida. É muito difícil, as pessoas têm muitas crises, muitas vezes também ficam ansiosas e deprimidas, o que também piora as dores".
Quais são as principais queixas que a médica neurologista Raquel Gil-Gouveia ouve no seu consultório? "O que as pessoas pretendem é controlar as dores, ter o menor número de dias com dor na sua vida", começa por responder. Mas há outras queixas que vão além da dor e que passam pela incapacidade que ela trás. "Há um grupo de queixas que tem muito a ver com a incompreensão em relação à doença. Muitas vezes não conseguem arranjar uma estratégia para gerir estas situações".
É comum os doentes com enxaqueca sentirem a desvalorização da sociedade face à doença. "As pessoas, às vezes, dizem: 'ah isso é só uma dor de cabeça, toma qualquer coisa que passa, porque é que não reages, porque é que não fazes um esforço para ficar melhor?'". Em contexto laboral, também sucede o mesmo. "Às vezes são vistas pelos colegas como preguiçosas: 'ah teve uma dor de cabeça e fica logo em casa'".
Aliás, a incompreensão no trabalho é uma das queixas recorrentes que a neurologista ouve nas suas consultas. "Há um componente, obviamente, de controlo da doença, da dor e das queixas que a doença trás, náuseas, dor, dificuldade de concentração, mas também há a componente da gestão do dia-a-dia que se torna muito difícil por causa deste estigma social em relação à enxaqueca, de que é uma doença menor, sem nenhuma implicação, que é fácil de gerir, o que não é sempre verdade".
"É uma doença neurológica, condicionada por uma alteração funcional do cérebro". Caracteriza-se por dores de cabeça intensas e crises recorrentes, e está associada a outros sintomas como a intolerância aos cheiros, ao som, "náuseas, vómitos, falta de apetite, de concentração". "Algumas pessoas têm mesmo períodos nas crises em que deixam de ver, deixam de sentir uma parte do corpo, de conseguir falar, de articular palavras", refere a médica neurologista. "É uma doença crónica. Quando tem nunca deixa de ter, é para toda a vida".
"Por definição, duram entre 4 a 72 horas [três dias] e vão recorrendo sucessivamente ao longo da vida de uma pessoa com uma determinada frequência que varia, pode ser uma, duas vezes por semana, mais do que uma vez por mês. Não é sempre igual", explica a neurologista Raquel Gil-Gouveia. "Em média cada crise dura 35 horas na população geral.
A estimativa é baseada no "estudo de prevalência", de 1995, explica Raquel Gil-Gouveia, da Sociedade Portuguesa de Cefaleias, que aponta um valor "à volta dos 10% da população portuguesa, um milhão de pessoas", que sofre de enxaqueca. Mais de 20 anos após este estudo, a prevalência da doença deve andar "à volta dos 10/15%".
"Mesmo assumindo os 10% de prevalência, temos um milhão de portugueses com enxaqueca e se se considerar que cada pessoa tem em media duas crises que duram um dia e meio dá três milhões de crises por mês o que dá todos os dias 100 mil", contabiliza.
"Todos os dias 100 mil pessoas estão com uma crise de enxaqueca, destas mais ou menos 80% têm alguma incapacidade, portanto são 80 mil pessoas que todos os dias ou produzem menos ou não trabalham ou não estão a fazer as suas atividades por causa da enxaqueca"
"O pico de incidência é entre os 25 e os 45 anos, mas pode aparecer em qualquer idade, pode ser aos 2, 5, 6 anos, como pode aparecer aos 80".
Por uma questão hormonal. Os estrogéneos aumentam e intensificam a doença. "As mulheres não só têm mais probabilidade de ter a doença como a têm mais vezes em média do que os homens, crises mais intensas e mais difíceis de controlar".
"Há um componente genético que determina como o nosso cérebro funciona e essa é a principal causa. Depois o segundo fator mais importante que condiciona o aparecimento ou não é o hormonal".
"Temos estratégias famarcológicas, os medicamentos, há vários tipos, uns de controloar as dores quando elas vem e outros para de tentar não ter tantas vezes dores de cabeça", explica Raquel Gil-Gouveia. Mas a médica tem também estratégias para melhor gerir o impacto desta patologia no doente, que podem passar pela medicina do trabalho no sentido de ajustar as funções e rotinas do trabalhador à doença.
"A Organização Mundial de Saúde faz anualmente um estudo, o Global Burden of Disease, sobre o peso anual das doenças no mundo. Os últimos dados que temos são de 2016 e a enxaqueca é a segunda causa mundial de anos vividos com incapacidade".