No dia 25 de Abril, em algum momento pensou que o golpe podia correr mal?Não. Tinha uma confiança muita grande nos nossos planos. Nesse mês, quando já tinha a ordem de operações completo - um trabalho perfeitamente solitário - senti a necessidade de ouvir a opinião de alguém e fiz uma reunião com Hugo dos Santos e Vítor Alves.Li a ordem de operações e pedi para dizerem o que pensavam. O Hugo dos Santos foi completamente contra. Achava que tacticamente era um erro. Achava que se deviam concentrar todas as forças do MFA num espaço grande, do tipo Campo Militar de Santa Margarida, e daí exigir a demissão do Governo. E disse-me que íamos fazer uma acção ofensiva, sem saber qual vai ser a resistência das forças governamentais. O Vítor Alves concordou, mas disse: «Se tu achas que esse é o plano ideal... Tu é que estudaste o assunto, sabes quais são as nossas forças e as forças inimigas, então estou de acordo». O Vítor Alves perguntou-me qual era a probabilidade de êxito. Eu respondi: «Considerando os imponderáveis, que surgem sempre, acho que temos 80% de probabilidade de êxito.» O Vítor Alves respondeu-me: «Se me dissesses que era 20%, já considerava uma maravilha. Se falas em 80%, fico descansado. Avança com isso.» Eu estava perfeitamente confiante..E quando a fragata que estava num exercícios da NATO regressa ao Tejo e toma posição frente ao Terreiro do Paço? Ficou preocupado?.Houve preocupação. Um ataque da fragata ia desequilibrar a relações de forças.Houve vários momentos de tensão, mas felizmente as coisas estavam «agarradas» pelo MFA. Tivemos a informação sobre a fragata pelo Almada Contreiras, que estava na cave do Ministério da Marinha, e aí fazia a escuta no centro de comunicações da Armada. O Vítor Crespo ficou alarmadíssimo, dá-me a informação que a fragata está no Tejo com ameaça de fogo sobre o Terreiro do Paço. O Vítor Crespo dá então indicações ao Almada Contreiras para a fragata regressar à esquadra. E a guarnição da fragata impediu o comandante Louçã de agir contra as forças do MFA no Terreiro do Paço.Como vê o comportamento dos dois generais, Spínola e Costa Gomes, no dia da revolução? Costa Gomes tinha sido escolhido, numa reunião do movimento, em Dezembro de 73, em Óbidos, como aliado se o golpe fosse um êxito.Costa Gomes foi eleito por uma votação esmagadora. Spínola, curiosamente, ficou em segundo lugar. Costa Gomes pareceu-me muito prudente.Dá-se o 25 de Abril e ele está numa consulta com a mulher no Hospital Militar, dando um ar aparente de distanciamento. Spínola não, arrisca mais, está em casa, à espera dos acontecimentos..Costa Gomes apareceu, à noite, na Pontinha, para discutir programa político. Spínola arriscou mais?.Sim. O que nos chegava de uma provável aceitação do programa político pelo Costa Gomes era-nos transmitido por Vasco Gonçalves.O Spínola arriscou mais. Discutia o programa do MFA com os seus homens de confiança. Fazia, pelo seu próprio punho, as alterações que achava mais convenientes. O papel era depois devolvido ao grupo político do MFA, que analisava essas propostas. Se esses papéis fossem apanhados..Spínola estava queimado?.Sim. E Costa Gomes estava safo. Não há rasto de Costa Gomes na preparação do 25 de Abril. Do Spínola, sim..Se o golpe tivesse falhado, o que faria?.Ia para o Tarrafal, para a «frigideira»..O MFA tinha algum plano de fuga? Alguma alternativa?.Não! Aliás, quando lhe apresentei o plano de operações, o Vítor Alves perguntou: «Ouve lá, por acaso pensaste em alguma alternativa?» Eu disse: «Qual alternativa? Não há alternativa nenhuma. Isto é vitória certa em menos de 24 horas, pá. Não há hipótese. Nem sequer pode demorar mais do que 24 horas.» Mas surgiu uma alternativa....De fuga?.Não. Nunca fugiria. Ia para o Tarrafal, pá. Quando me despedi da minha mulher, no dia 23, sai de casa para Pontinha e disse-lhe isso. Ela ficou petrificada. Disse-lhe: «Tenho quase a certeza da vitória, mas se por acaso houver algum problema, se as unidades não saírem, é o desastre. Se isso acontecer, vou preso, para o Tarrafal ou serei morto, não sei. Portanto, esta pode ser a última vez que nos vemos.» Dei um beijo ao meu filho, despedi-me da minha mulher.Mas qual era a alternativa?.A 24 de Março, numa reunião em casa de um capitão, em Oeiras, eu disse que, a partir daí, teríamos que dar a sensação ao Governo de que o movimento morreu, por causa do 16 de Março [a revolta das Caldas]. E aproveitaríamos esse período para preparar a acção.A partir daí, não haveria telefonemas nem comunicados. Era para dar a ideia de que o MFA se extinguiu. O MFA no Ultramar ficou sem notícias do movimento e partiram do princípio que estava extinto. Por essa altura, vem cá a Portugal um oficial do MFA da Guiné-Bissau - o major Aragão - que quer saber o que se passa.O Spínola manda-o falar comigo e aí eu sugiro: «Se alguma coisa correr mal aqui, vocês, lá na Guiné, podem constituir uma alternativa.Levas a indicação para a malta... Se tiverem notícia de ter havido um falhanço do golpe aqui em Lisboa, prendem o comandante chefe, os dois chefes de Estado-Maior, e "sacam", pá, o pessoal que puderem de altas patentes. Ficam com eles como reféns e exigem ao Governo que liberte a malta do golpe. Se não tomam a Guiné e tornam a Guiné independente.» Era uma alternativa e o major Aragão levou essa indicação para a Guiné. Não sei se ele chegou a transmiti-la à malta....Após o 25 de Abril, começam a surgir as primeiras clivagens entre o MFA e parte da Junta de Salvação Nacional. Como se situa nesse debate?.As clivagens eram as já esperadas - com a chamada ala spinolista sobre a política ultramarina. E eu estou perfeitamente ao lado da Comissão Coordenadora, que vai ter por missão vigiar o cumprimento do programa do MFA.As suas relações com o PCP sempre foram tumultuosas?.Nem sempre. O PCP tende sempre a dar polimento mesmo ao seu adversário, desde que ele esteja no poder. Enquanto estive no poder, no Copcon e no Conselho da Revolução, ao PCP interessava manter uma cordialidade grande comigo. Tive conversas com Álvaro Cunhal, com Jaime Serra, com Rogério de Carvalho, do Comité Central, destacado pelo PCP para os Arquivos da PIDE. Cheguei a ter conversas a sós com Cunhal....O que lhe disse? O que lhe pediu?.Quando se encontrava comigo, a tendência de Álvaro Cunhal era, serenamente, fazer críticas ao MFA ou ao Copcon. Uma vez, ele e o Vasco Gonçalves, até me pediram [ao Copcon] para dispersar uma manifestação contra a NATO, em Lisboa, em frente à embaixada americana. Como não era uma manifestação organizada pelo partido...O argumento, tanto do Cunhal como do Vasco Gonçalves, é que eram manifestações selvagens. Na verdade, o meu contencioso com o PCP começa após o 25 de Novembro, quando abandono o Conselho de Revolução: já não tenho poder e ideologicamente sou um adversário....Que sugestões lhe fazia Cunhal quanto ao rumo da revolução?.Julgo que Cunhal começou a considerar-me, a partir de certa altura, um perigoso esquerdista. Ele queria desviar-me desse perigoso caminho do esquerdismo e fazer-me enfileirar na ala correcta da esquerda militar. A minha perspectiva era diferente. Achava aquele dogmatismo, o controlo dos trabalhadores execrável. Dei-me mal com o partido. Nem Cunhal nem Vasco Gonçalves conseguiram convencer-me..Falemos sobre o seu encontro com Fidel Castro, em 1975. Ele disse que ficou desiludido consigo. Sabe porquê?.Foi ele que disse isso?.Disse-o, mais tarde, a Costa Gomes..Quando estive em Cuba, na véspera de me vir embora, o Fidel pediu para termos uma conversa privada - eu, ele e o Raul Castro. Fidel disse-me que tinha recebido uma carta do Agostinho Neto a pedir apoio militar. O MPLA estava acantonado em Luanda, numa situação dramática porque não tinha forças para se opor à UNITA, que tinha o apoio dos sul- -africanos, nem à FNLA, com apoio das tropas zairenses. Por isso, pediu o apoio de forças cubanas. Julgo que o Fidel já tinha colocado a questão à URSS, mas Moscovo negava uma intervenção militar, em nome do equilíbrio das duas superpotências.O Fidel perguntou-me: «E vocês, como é? Portugal apoia o Agostinho Neto?» Respondi que não. A nossa posição era fazer regressar as tropas portuguesas em Angola e não enviar um só soldado mais para a África. Disse a Fidel que, se estivesse no seu lugar, enviava tropas para Angola. «Estou disponível para fazer isso, mas preciso de saber qual é a posição de Costa Gomes», disse Fidel, pedindo-me que falasse ao presidente português no regresso a Lisboa. E disse-me que ficaria uma semana à espera da nossa resposta: «Se, ao fim de uma semana, o Costa Gomes não disser que vai apoiar o Agostinho Neto, então eu mando tropas para Angola.» Isto aconteceu em Julho de 1975. Quando cheguei a Lisboa, fui para um reunião do Conselho da Revolução e, no final, pedi para conversar com Costa Gomes e transmiti-lhe a mensagem urgente e secreta do Fidel. Perguntei se queria que desse uma resposta.O general disse-me para ficar descansado que a mensagem está entregue e que «depois eu trato disso». O Costa Gomes nunca disse nada a Fidel, que, passada uma semana, começou a enviar tropas para Angola. Mais tarde, o Gabriel Garcia Marques disse ao Vítor Alves que Fidel tinha ficado muito desiludido comigo porque não tinha transmitido a mensagem dele a Costa Gomes. O que é mentira..No 25 de Novembro, em algum momento sentiu que o projecto de poder do PCP relativamente à revolução também passava por si? Apercebeu-se de alguma coisa, nas conversas com Álvaro Cunhal ou dos conselhos do Fidel?.Quem estava interessado que eu fosse a Cuba era o PCP. O Fidel, aproveitando a vinda da Annie Silva Pais [filha do ex-director da PIDE que viveu em Cuba] sonda-me e depois tudo é organizado entre o PCP e o Fidel. Isto acontece em Julho de 1975 e eu já tinha dado francas mostras ao PCP e a Cunhal que não jogava do lado deles. Longe de ser sequer um compagnon de route. Sabendo que eu admirava o Fidel e Cuba, o PCP pensava que essa viagem era uma maneira de vir de lá doutrinado. Ainda por cima, nesse ano, o Fidel Castro fez a experiência do poder popular em Cuba.Foi isso que me entusiasmou em Cuba. Gostei muito de algumas coisas; vim impressionado com o que era feito na saúde, na educação, a erradicação do analfabetismo. Vim de lá como tinha ido. De esquerda, sim marxista não.Identifica-se com a democracia de hoje?.Não... Embora tente compreender a perspectiva de José Saramago quanto ao voto em branco. Eu poderia ter uma posição similar com a abstenção. Porque considero que se houvesse 70% de abstenção isso significaria um desligamento de tal forma grande quanto à democracia representativa que obrigaria as pessoas a pensar num outro tipo de regime político. Poder-se-ia dizer que a democracia é o regime menos mau de todos, na comparação dos vários regimes existentes. Aquilo que fizemos com o 25 de Abril, e que constava no programa do MFA, era a instauração de um regime de democracia burguesa parlamentarista - é uma expressão leninista, mas é verdade.A partir de 74-75, durante o PREC, o regime político que defendi era uma democracia directa, um sistema de eleição directa, da base até ao topo. Na freguesia elegiam-se 6, 8 ou 20 pessoas.Esses 20 elegiam três ou quatro para uma assembleia municipal.Aí eram eleitos para um Parlamento que depois escolhia o Governo.Essa experiência falha redondamente.Era preciso haver vontade política e isso obrigaria à eliminação dos partidos; deixava de haver a votação em partidos, que representam interesses. E obrigaria que os cidadãos participassem activamente na vida política. E até houve uma experiência de democracia popular, durante o período do PREC, na Pontinha. Se nessa altura não foi possível pôr em prática a democracia directa, hoje ainda menos seria, admito.Como se define politicamente, hoje? É de esquerda....Claro..É socialista?.Sim..Do socialismo democrático?.Isso não, cheira-me logo ao meu amigo Mário Soares. Esses eufemismos do socialismo democrático são os termos utilizados pela classe dominante, pela burguesia. Mário Soares nunca deixou de dizer que é burguês. Gosta de comer bem. Mas o meu sentimento é que podíamos ter outro regime político... Numa sociedade estruturada numa democracia directa, as pessoas poderiam afirmar-se nas suas diferenças, podendo ser eleitas pelas suas capacidades..É marxista?.Não, não sou..Nestes últimos 30 anos, onde ficou a utopia?.Tenho a convicção de que as utopias podem transformar-se em realidade.Tudo o que nos rodeia foram utopias que se transformaram em realidade.Desde o automóvel até à televisão. O 25 de Abril também foi uma utopia. Hoje em dia é fácil dizer que o regime estava podre e que bastava um abanão para cair. Sem o 25 de Abril, mais cedo ou mais tarde teria havido outra acção com vista ao derrube do regime. A transição suave do regime para uma democracia teria sido extremamente difícil..Acha que seria necessário hoje um novo 25 de Abril?.Não, nós fizemos o 25 de Abril para ter uma democracia e esse objectivo central foi conseguido.No dia 26 de Abril, findo o golpe, pensou que a sua vida ia mudar?.Francamente não. Saí do Posto de Comando às 13 e 30 e estava convencido que a minha missão estava concluída. Felizmente, com êxito. Tanto que, na segunda-feira, apresentei-me na Academia Militar, para dar aulas. Um ou dois dias depois, recebo uma guia de marcha para a Cova da Moura, já tomado pelo MFA. Lá fui para a Cova da Moura, andei a bater em várias portas, fui chutado de vários locais até que me disseram que devia ir para o CCO (Centro de Controlo de Operações), chefiado por Almeida Bruno.Bati à porta, apareceu um capitão da Força Aérea, pergunta o que quero e diz-me: «Isto aqui já está cheio. Procure aí outro lugar e tal...» Quando já tinha virado costas, esse capitão pergunta-me: «Desculpe, ó meu major, como é que se chama?» Digo o meu nome e ele disse: «Ó senhor major, desculpe, entre aqui...» E lá fiquei..PerfilOtelo Saraiva de Carvalho. Tenente-coronelFoi um homem de confiança de Spínola, na Guiné, antes de 1974.Mas a revolução e a via socialista colocou-os em rota de colisão no Período Revolucionário em Curso. Major a 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho foi o estratego do golpe, depois graduado em brigadeiro e general. Admirado e odiado com o mesmo fervor, Otelo associou-se à ala mais radical da revolução, apoiou a Reforma Agrária e as ocupações de terras no Alentejo. Ameaçou «meter os fascistas no Campo Pequeno», despertou ódios e entusiasmou uma extrema-esquerda sem líder. Foi candidato nas presidenciais de 1976, ganhas por Ramalho Eanes, e ficou em segundo lugar.Em 1984, é preso sob a acusação de liderar as FP-25 de Abril, organização armada que lutava pela «revolução socialista». Sempre o negou e foi condenado a 18 anos. Cumpriu cinco anos. Em liberdade desde 1989, vive nos arredores de Lisboa. Tem 67 anos.