Entrevista Paulo Teixeira Pinto

Hoje Paulo Teixeira Pinto faz 50 anos. Numa data redonda - 10/10/10 - que lhe diz muito, a ele, amante dos números. Por isso resolveu dar a entrevista longa que há muito recusava. Fala da sua mudança de vida, dos problemas no BCP, da pintura, da morte do filho, da doença e também de política. A sua proposta de revisão da constituição, o PSD, Pedro Passos Coelho....<br />
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Hoje faz 50 anos. Se lhe dissessem - quando era criança - que com esta idade teria uma editora, pintava e escrevia, ficaria surpreendido?
Ficaria seguramente. Assim como não sou uma pessoa de viver de memórias, também nunca fui uma pessoa de sonhos.

Se pudesse voltar atrás, mudava alguma coisa nestes 50 anos?
Obviamente. Não consigo deixar de sorrir quando oiço algumas pessoas dizerem que não mudavam nada. Eu todos os dias faço asneiras, cometo erros.
Não é um ou outro ao longo dos 50 anos, é todos os dias.

Por exemplo, teria aceite o cargo de Presidente do BCP se soubesse o que sabe hoje?
Sim. Tenho muito orgulho no trabalho que fiz., apesar de mão  terem sido tempos de felicidade pessoal ou profissional...

Foram os piores tempos da sua vida profissional?
Foram os mais conturbados. Mas se eu soubesse o que sei hoje, iria para o banco e aceitaria as responsabilidades que aceitei, sim. E aquilo que eu teria mudado não era nada do essencial.

O balanço final é positivo ou negativo?
Do ponto de vista pessoal, referindo-me à minha intimidade, foi muito doloroso. Houve coisas que me custaram muito. Eu procurei que elas não se transmitissem para o exercício do meu desempenho e os registos são as coisas que ficam, não são as emoções ou sentimentos.

Às vezes os sentimentos também ficam.
Ficam connosco. As instituições não têm sentimentos. Eu nunca mais falei, desde o dia 31 de Agosto de 2007, quando saí do banco, sobre qualquer assunto directa ou indirectamente relacionado com a vida da instituição. A não ser para dizer que tinha plena confiança no seu desenvolvimento futuro, porque as pessoas que lá ficaram merecem-me um profundíssimo respeito.

Nunca vai falar sobre o que se passou?
Não. Nunca... sempre... são palavras que não gosto de dizer. Enquanto houver pendências por resolver podem publicar os livros que quiserem, dizer-se o que se quiser, eu terei que manter o meu compromisso perante mim mesmo: ninguém pode citar uma única frase minha que ponha em causa a idoneidade e a integridade de alguém, ou que ponha como situação controversa a vida interna do BCP.

Há uma questão pessoal aqui também, a da sua relação com o Eng. Jardim Gonçalves, que o escolheu.
Numa entrevista que ele deu recentemente (à revista NS) recordo-me de ter lido que nunca houve nenhum problema pessoal entre nós. E eu estou de acordo.

Apesar de não ser arguido em nenhum dos processos crime do BCP, o seu nome também apareceu nos jornais ...
Isso é inevitável, porque as pessoas relatam as coisas sempre com base naquilo que possa susceptibilizar o maior interesse de quem leia. Nomes conhecidos são sempre mais apelativos que desconhecidos. Maiores responsabilidades dão sempre títulos maiores. Eu acho que quem está na vida pública tem que estar preparado para esses riscos. Eu não posso ser responsável pela percepção que as pessoas têm das coisas, mas se assim é, assim é. Eu julgo que apesar de tudo essa não é a dimensão maior.

Qual é a dimensão maior?
A dimensão maior é reduzirem uma pessoa a um estereótipo e acharem que a pessoa por ter sido político, ou banqueiro, o que quer que seja, só pode ser aquilo e que isso é inibidor de ser outras coisas. Quando comecei a ter mais exposição pública tinha uma grande preocupação -e essa sim, atormentava-me - que era a circunstância de ter filhos novos ainda. Com 25 anos tinha dois filhos. Quem se aventura numa situação dessas nunca sabe o que é que de si mesmo pode ser dito em termos públicos. Se nalguma comunicação social pode haver maldade, nas escolas há de certeza. Atormentava-me que um dia os meus filhos pudessem ter problemas ou sofressem por causa de mim. Felizmente nesse período não sucedeu nada. Tentei preservar o máximo a vida familiar da minha exposição pessoal decorrente do exercício de funções profissionais. Mesmo durante o período do banco tentei que isso sucedesse, embora em especial o meu filho tenha sofrido bastante com algumas coisas.

Do banco?
Sim. Um dia ou dois antes da minha saída a primeira página de um jornal era um acidente de automóvel que o meu filho tinha tido, que só era notícia porque ele era meu filho. Ninguém consegue imaginar o impacto que estas coisas podem ter numa família.

Eles falavam disso consigo?
Falavam. Nós tínhamos uma relação muito aberta. Eu não entrava, porque obviamente não podia entrar, nos assuntos profissionais - aliás, nem nunca levei documentos de trabalho para casa.

A família ajudou-o?
Claro. Hoje, de uma maneira mais dramática mas também para mim mais viva, tenho uma medida de comparação do que é a dor e da importância relativa das coisas. Coisas que são de facto muito desagradáveis, como esse processo do banco ou outras, mesmo estas controvérsias da revisão constitucional, por exemplo, são coisas que em circunstâncias normais, e para uma pessoa sem grande experiência do lado duro da vida, podem ser bastante contundentes. Eu repito que não sou insensível a elas e à imagem que se tem de mim, mas comparando com a experiência brutal e o que é o verdadeiro sofrimento que é a perda de um filho, que eu vivi, que é uma mutilação interior, essas coisas parecem todas relativamente pequenas.

Numa entrevista de 2006, falava de Deus e do destino e disse que ainda não tinha sentido o desespero de uma tragédia.
Agora já senti o desespero maior, a tragédia maior. Da mesma forma, nesse tempo dizia que a vida tinha sido demasiado generosa, para comigo e tinha mesmo - não merecia aquilo que a vida me tinha dado... De repente fez um ajuste de contas comigo...

Não acredita nisso que está a dizer, pois não?
Não acredito em alguma coisa que não seja a capacidade das pessoas e a indeterminação do futuro. Dito de outra maneira, eu tive uma vida que me proporcionou momentos de felicidade, até de relação com as coisas, sejam elas mais intangíveis - como o poder - ou mais tangíveis - como bens materiais - para as quais eu não me tinha preparado. Não era o meu objectivo de vida, não lutei por isso. Quando acabei de me licenciar comecei a dar aulas e achava que a minha vida ia ser dedicada à história do direito, algo que não tinha qualquer compensação económica distintiva.

O dinheiro é um tema importante na sua vida. Deu-lhe liberdade?
Liberdade tem-se dentro de si, quando as pessoas são capazes de prescindir ou de fazer certas coisa sem a necessidade da conveniência ou não. Nesse sentido o dinheiro não me deu liberdade, porque sempre me considerei um homem livre. Agora, deu-me oportunidade de escolher viver de uma determinada maneira, que é uma coisa diferente. Eu poderia simplesmente sobreviver sem trabalhar, isso se calhar era o que qualquer outra pessoa poderia ter feito no meu lugar. Podia-me ter ido embora ou podia não fazer nada. Eu não me imagino a não fazer nada. O dinheiro não me acrescentou liberdade, mas permitiu-me escolher o tipo de vida que hoje posso ter, isso sim.

Alguma vez pensou: «E se eu perdesse tudo?»
Disse uma vez numa entrevista que sempre soube que ia perder tudo.

Não estava a pensar no que, de facto, perdeu.
Pois não. Lembro-me de ter dito na missa de corpo presente do meu filho, num texto que lá li, que nem Deus, nem a natureza, nem o destino, que me podem tirar tudo, me podem tirar a circunstância de ter sido pai de quem sou. Isso para mim é o mais importante. Eu não esperava vir a ser presidente de um banco, nem secretário de estado da presidência, nem editor, nem o que seja. Nesse sentido a vida era maravilhosa para mim e, de repente... quando eu falo em ajuste de contas, é que... a vida golpeou-me com uma violência para a qual não pode haver resposta, não há resposta.

E depois as coisas nunca mais são iguais.
Nunca. Nunca mais pode haver uma plenitude de felicidade. Mas, ao mesmo tempo também há uma outra dimensão: nos momentos mais amargos, ou mais difíceis, sinto realmente presente o meu filho. E é perante ele que eu encontro o conforto.

A morte do seu filho alterou a sua relação com Deus?
Alterou, sim. Evidentemente, era um percurso que eu já tinha começado e que já estava marcado num trajecto de vida. Mas olho para trás e lembro-me do que disse quando ele morreu e julgo que isso me marcou e não pode ter deixado de me perfurar, mesmo nessa dimensão.

Esse afastamento da fé era um caminho que já estava a percorrer...
Eu nunca fui pessoa de gostar de ficar a meio do caminho e quando senti dentro de mim um apelo de vocação espiritual, religiosa, não me fiquei por essa sensação. Levei até ao fim as consequências de a ter. Procurei formação, estudei filosofia e teologia e tornei-me fiel da prelatura do Opus Dei que tinha um plano de vida exigente, a dedicação total a Deus de acordo com os princípios da igreja católica, o que exigia algum sacrifício pessoal. Eu vivia com esse patamar de exigência máxima. Não apenas quando era possível ou quando dava jeito, ou aos domingos de manhã... Era diariamente. Sabendo que enquanto fui membro da Opus Dei - que era e nunca o escondi - isso só me trazia problemas e não qualquer tipo de vantagem. Porque, mais uma vez, era um argumento, era um álibi perfeito para um preconceito.

Porque é que as outras pessoas o escondem?
Não sei, não falo por outras pessoas. Mas faz parte da vida íntima de cada um e de facto ninguém é obrigado a dizê-lo. Depende da vontade de cada um.

E então, quebrou-se esse caminho...
Quando achei que a forma como eu vivia já não correspondia àquilo em que eu tinha acreditado, lutei um tempo, para dar espaço, para que não fosse uma desistência, um capricho, uma fragilidade... Dei esse tempo razoável, partilhei-o com as pessoas que me acompanhavam na prelatura e com a mesma liberdade com que decidi entrar, decidi sair.

Sair da Opus Dei não é deixar Deus.
Não. Mas eu nunca tive nenhuma dificuldade com a Opus Dei. O meu problema foi  já não ter a fé tal como ela é defendida, de uma forma dogmática ou ortodoxa.

Perdeu a fé?
Tal como a tinha, sim. Nesses tempos em que a fé para mim era uma realidade luminosa, achava que esta era um dom e que ninguém tem mérito em ter dons. E, portanto, reflexamente, também não havia culpa em não os ter. Vivo tranquilo com a minha forma de viver hoje, não me sinto em falta perante ninguém, nem perante Deus. Não o digo com presunção, digo-o com escrúpulo no sentido de dizer que já não o vejo como via. Mas, se ele está lá, ele vê-me como eu o estou a ver.

Ter Parkinson, uma doença incurável, também mudou a sua vida nesse sentido?
Eu procurei não mudar em nada o meu estilo de vida com essa circunstância. No dia em que o soube fiz duas perguntas ao médico e fui trabalhar. Soube isso num dia de manhã numa consulta de rotina, na clínica espanhola onde tinha ido fazer um check up, e à hora de almoço estava em Lisboa e fui trabalhar durante toda a tarde e nos dias seguintes sem que ninguém alguma vez pudesse suspeitar do que quer que fosse.

Não mudou nada?
A doença fez-me ter presente mais cedo do que seria normal o que é a limitação física. Todos nós estamos condenados, de uma maneira ou de outra, embora nas mais das vezes sem pré-anúncio ou sem ser visto como mensurável, aplica-se apenas a lei da vida. Eu encaro isto numa perspectiva de... não sou eu que existo para a vida, é a vida que existe para mim. E por isso não estou disposto a sujeitar-me a determinado tipo de privações ou intervenções médicas que ponham em causa a minha forma de viver apenas para poder sustentar um tempo maior de vida.

Tratamentos?
Esta é uma doença que é progressiva, degenerativa e incurável. E eu, como acho que a vida existe para mim, quero vivê-la plenamente todos os dias.

A doença não lhe deu pressa de viver?
Não. A coisa mais difícil é a normalidade. Tive que aprender a fazer também outras coisas nesta nova vida. Já pinto com a mão esquerda, quando sou destro. É aí que encontro mais dificuldades, na minha liberdade de expressão física. E é essa fase da vida para a qual eu tenho de me preparar, procurando que isso não se transforme num drama.

Visto a esta distância, foi a doença que o fez verdadeiramente mudar de vida...?
Eu tenho que admitir que essa hipótese tenha existido. Premeditadamente, não. Mas nós somos influenciados por coisas que não conhecemos. Eu, olhando para trás e para a conjugação temporal de algumas coisas, admito que possa ter sido...

Mas não foi consciente?
Não, mas tenho de admitir que provavelmente não foi indiferente.

Mas ter mudado de vida foi uma escolha racional?
Foi uma escolha, ser capaz de me desvincular daquilo que me desvinculei. Não foi tomada a decisão no momento, susceptível de ser registada em acta no dia tal. Não foi uma epifania. Habituei-me desde muito novo a todos os dias reflectir sobre o meu dia, sobre a minha vida. Quando estive na Obra fazia parte da formação interior das pessoas, um exame de consciência diário. Quando decidi mudar, sendo o mesmo, passei a ser outro. Ou seja, o homem é o mesmo mas a condição em que está é outra.

Há coisas que ainda gostava de fazer e não fez?
Sim, gostava sobretudo de completar aquilo que estou a escrever e gostava de o fazer bem. Ter condições para o fazer bem. Gostava de conhecer algumas coisas do mundo que ainda não conheço. Não tenho assim grandes ambições.

A que sítios gostava de ir?
Há um que me fascina desde miúdo, a ilha de Páscoa. Quando não há explicações óbvias e evidentes para as coisas elas tomam uma carga misteriosa. E desde novo que tive este fascínio para querer perceber as coisas.

Já lá podia ter ido...
Já lá podia ter ido... não podia, porque nunca tive tempo para isso...

E vai fazer tempo para isso?
Vou procurar ter tempo também para isso. Para mim, neste momento, o critério essencial é procurar encontrar dentro de mim mesmo tempo para mim e para a minha intimidade.

Isso coordena-se com o trabalho ou implica deixar de trabalhar?
Eu julgo que nunca conseguirei estar totalmente desligado de uma actividade de acção. Vivo num fervilhar de novas ideias e novos projectos. E não sei sequer se vou conseguir aquilo que podia ser a minha quinta vida.

Quinta?
Já tive quatro vidas profissionais. Primeiro, a académica, na universidade.
Depois a política, depois a financeira, depois este poliedro de coisas. E agora, quero reservar dois ou três dias da semana para mim, para pintar, para escrever, para ter tempo.

Essa necessidade de fazer coisas não tem um pendor de posteridade?
Não. Se dependesse de mim, o que eu queria era que não houvesse vestígios.

Para quem pinta, isso é um pouco difícil.
Ou para quem escreve. Mas não tem nada a ver com a tentação de eternidade. Até porque a percepção que tenho da eternidade é apenas o resto do tempo que tenho para descansar. Quando era miúdo, li aquela sentença clássica de que um homem só é homem depois de ter plantado uma árvore, escrito um livro e feito um filho. Eu fiz as três coisas relativamente novo: escrevi o primeiro livro com 23 anos, tive uma filha também  com 23 anos, as árvores, plantei-as mais cedo. Mas imagino-me hoje como árvore - que, depois de transformado em cinza deitada à terra, possa ser nutriente para outra árvore. O apelo da eternidade não é mais do que isso.

A pintura foi fundamental na sua nova vida?
Foi e ainda é.

Substituiu de alguma forma a religião?
Não, eu comecei a pintar antes desse afastamento. Não há uma correlação entre as coisas. Foi importante porque me deu uma forma de expressão diferente daquela que eu era capaz de manifestar e ainda hoje, para mim, é uma forma de libertar criação. Procuro criar, verdadeiramente... A única coisa ilimitada que pode haver é a criação, a capacidade imaginativa, fazer coisas novas. Aí não há limite a não ser o do talento, acho que esse é o limite verdadeiro que se deve procurar.

E a poesia também. Voltou a escrever?
Faz exactamente dois anos que foi apresentado o meu livro de poesia, e durante mais de um ano eu não fui capaz de voltar a escrever, depois da morte do meu filho. Agora estou a recomeçar a trabalhar em projectos que deixei interrompidos, incluindo alguma coisa de poesia, mas fundamentalmente dois livros, um chamado Andamentos da Vida...

É uma biografia?
Não, nunca farei biografias. Mas são fragmentos de reflexões feitas ao longo dos anos. E outro, que é um ensaio sobre a natureza e a missão de Portugal.

Como seria o Portugal que ainda gostava de ver na sua vida?
Gostava que fosse um sítio de inclusão. Um sítio onde viessem pessoas de todo o mundo, que se sentissem portuguesas, não um sítio onde nós tivéssemos dificuldades em encontrar ou encaixar os outros de fora. Nós tivemos sempre uma vocação de nos espalharmos pelo mundo e temos muito orgulho disso. Devemos ser um sítio cosmopolita, de modernidade em todos os sentidos. Poucas coisas me aborrecem mais que o espírito conservador, - curiosamente, eu nunca fui conservador.

Embora muita gente ache que é.
Acha mal. Portugal devia ser um centro de contemporaneidade e de desenvolvimento humano, onde as pessoas se sentissem bem e com uma coisa a que se dá pouco valor porque aparece como uma alínea de todos os problemas mas que é o principal, a qualidade de vida. Há coisas em que nós fomos os primeiros e dessas devemos ter orgulho. Fomos o primeiro país a eliminar a pena de morte, em 1867. Naquilo que diz respeito ao humano, estritamente humano, podemos ser verdadeiramente bons. A única estatística que verdadeiramente me interessa é essa: tornar Portugal num dos melhores países do mundo para viver.

Se calhar já é e nós nem nos apercebemos.
Para algumas coisas, na nossa própria apreciação da identidade portuguesa, somos bipolares. Passamos da euforia de sermos os melhores do mundo a um estado de auto-humilhação incompreensível. O problema de Portugal é que há muitos anos que não tem grande desígnio nacional.

Só a selecção nacional.
Só a selecção nacional e... umas medalhas olímpicas. Isso deve fazer os políticos pensar.

Se calhar estamos um pouco cansados dos nossos desígnios nacionais que já foram muito fortes...
Estamos cansados do que não temos. Já tivemos vários. Mas também não concordo com a posição de velho do Restelo, do "dantes é que era". O espírito de iniciativa, de descoberta, que hoje se chama inovação, é a única forma de chegar a algum lado. Não garante que se chegue, mas se não se partir nunca se chega.

Nunca lhe apeteceu sair daqui?
Nunca... não. Nós somos nós e os outros que nos rodeiam, no espaço onde vivemos. Sendo todos cidadãos do mundo, pertencemos a um lugar. Temos um vínculo e não nos podemos desligar das coisas simples e ir embora. Tentação de sair de Portugal nunca a tive.

Por razões ideológicas?
Não, por uma questão de estilo de vida. Não acredito que os problemas se resolvam por fugirmos deles. Para mim, neste momento, se calhar, poucas coisas do ponto de vista estritamente racional justificavam ter vontade de continuar a lutar, a viver, a fazer coisas. Mas o meu carácter não é esse. Se calhar também porque já vivi a experiência de ter de sair contrariado de uma terra que era a minha.

Saiu de Angola, aos 14 anos.  
Muitas vezes perguntam-me onde eu nasci, e eu respondo, a brincar, "no hemisfério sul". Nunca mais voltei à terra onde nasci.

À terra, mesmo, ao Huambo, Nova Lisboa?
Sim, à terra mesmo. Voltei a Angola pela primeira num âmbito estritamente profissional, mas que não deixou interiormente de bulir com alguma coisa de emocional. Era uma situação que... não era apenas atípica, era quase impossível do ponto de vista lógico. Se constasse de um filme dir-se-ia: "Essas coisas só acontecem na ficção, não na vida real". A mesma pessoa que sai num avião de refugiados quando volta é para inaugurar um banco. Foi exactamente assim. Não pode deixar de fazer alguma impressão.

Mas já não era o seu país.
Há uma parte de Angola que foi sempre uma coisa distinta de Portugal. Portugal nunca foi só, nem principalmente, aquilo que deixou aos outros, foi aquilo que recebeu dos outros. E sendo juridicamente na altura parte de Portugal, e agora um estado independente, eu não posso deixar de me sentir português porque é assim a minha filiação, mas também não posso deixar de me sentir angolano porque foi lá que nasci.

O que é que isso mudou em si?
Uma característica que adquiri desde cedo foi a ideia de que passado é passado. Há uma coisa em que eu sou muito pouco português, que é a saudade. Eu nunca fui virado para as coisas do passado, basta-me vivê-las uma vez, não preciso de as reviver. E ganhei a ideia de que o imponderável pode mais do que nós. Desde essa altura que tenho para mim claro que o sofrimento nos acontece e a felicidade procura-se. E a minha vida não tem sido outra coisa que um combate contra o sofrimento, com momentos muito felizes.

E o que é que ter nascido numa colónia mudou na sua visão do mundo?
Levou-me a reflectir sobre Portugal desde muito novo. Se tivesse continuado a minha vida normal e nada tivesse sucedido provavelmente não teria sido uma preocupação, um tema de reflexão. Eu nunca sou neutro a falar de Portugal, porque gosto muito de Portugal. Hoje continuo a gostar muito, mas com a maturidade e a experiência decorrente da própria idade. Quanto ao papel de Portugal no mundo, num certo momento tive também uma atracção pela literatura com uma dimensão mítica. No fundo é o papel que lhe atribui Camões, depois o padre António Vieira, depois o Fernando Pessoa, todos eles atribuem a Portugal uma espécie de destino messiânico. Mas eu não acredito no destino e no pré-determinismo... Acredito em vocações. A nossa vocação colectiva... as vocações existem mesmo que não as conheçamos. No fundo, como vem do próprio termo, é uma espécie de apelo. E o nosso apelo foi sempre, sendo o único país da Europa que só tem uma fronteira terrestre, ir para além do sítio onde estamos. Acho que essa é, nas variáveis do nosso percurso histórico, uma constante.

Que imagem é que teve de Portugal quando chegou cá?
Cheguei numa circunstância um pouco atípica, vim num avião de refugiados.

Qual era o avião, lembra-se?
Era um avião da Swiss Air, tinha sido fretado para ir buscar pessoas ao Huambo, antiga Nova Lisboa.  E vi um país em que toda a gente vivia em fúria incontida e ao mesmo tempo num ódio controlado. Foi em 75, eram todos os excessos revolucionários. Era um mundo novo para mim. E lembro-me que muitas pessoas que vieram também, da minha geração, terem a tentação de se isolarem. Diziam: «Esta gente aqui não nos compreende, são diferentes». Se havia algum complexo das pessoas de lá em relação a Portugal não era de inferioridade, era de superioridade. O nível de vida era melhor, tinham coisas mais modernas. De facto, hoje é difícil imaginar, tantos anos depois, conhecer o que era o Portugal de 75 e o que era Angola de 75, a verdade é que havia um padrão de vida diferente. Isso a mim fez-me alguma confusão. Mas a atitude que tomei foi de «é esta vida que eu tenho pela frente, é esta que eu tenho que viver».

Para que liceu foi?
Padre António Vieira, em Lisboa. Mas antes ainda tive que estar uns meses na Póvoa de Varzim. Não tinha lá família e os meus pais nunca lá tinham estado mas a minha mãe era professora e foi ali colocada. Fiz lá o antigo sexto ano de liceu. Depois o sétimo já fiz no Padre António Vieira. E tentei viver com normalidade no meio da anormalidade. Foi a primeira vez na minha vida que tive que recomeçar tudo, sem um amigo. E tive a preocupação de escolher cadeiras que fossem novas, com uma base de (des)conhecimento igual aos outros, latim, alemão... coisas que eu nunca tinha tido mas que os outros também não. Isso permitir-me-ia fazer um desempenho académico que em princípio não fosse influenciado pela maior ou menor preparação que teria tido no liceu.

Nessa altura sentiu que Portugal era um sítio integrador?
Olhando para trás, foi fantástica a forma como ficou plasmada a integração de mais de meio milhão de pessoas. Esses a quem chamavam retornados, mesmo que alguns não tivessem retornado de coisa nenhuma porque nunca cá tinham estado.

Como era o seu caso.
Não nasci cá, não retornava a lado nenhum. Antes de viver em Portugal tinha estado cá duas vezes em férias. Para mim foi quase como emigrar.

Foi emigrar, a única diferença era que conhecia a língua e a história era a mesma.
Sim, mas o contexto era totalmente diferente.

Nessa altura tinha visão política? O que é que pensava da independência das colónias?
Evidentemente que defendia a independência de Angola.

Mas queria ficar lá.
Queria ficar lá. Se não tivesse havido guerra civil a tendência normal das coisas teria sido continuar lá.

Isso, sim, era um sonho.
Na altura era o que me parecia normal. Foi a primeira vez que tive de acordar para a realidade. Era um idealismo infundado. A tentação das pessoas foi logo fugir, algumas ainda nem sequer tinha começado a guerra. Eu, na altura lembro-me de algum estigma social que se tentou pôr nas pessoas que vinham de lá, nalguns meios. Mas Portugal foi fantástico nisso, porque uns anos depois temos uma integração surpreendente, não teve comparação por exemplo com o que existiu na França, com a Argélia. E hoje nos mais diversos domínios, desde a comunicação social à universidade, estão presentes muitas pessoas que vieram de Angola e Moçambique, não só no desporto, como antes era hábito, mas em todos os sectores. E ninguém nota qualquer tipo de segmentação. Isso é que eu chamo uma capacidade de osmose, plástica. Deixou de ser tema ao fim de uns anos. E isso é uma coisa que eu acho que enobrece muito Portugal. Voltando ao ponto em que falávamos de sair de Portugal, eu nunca senti a tentação de abandonar Portugal, de ir viver para fora. Mas sinto agora uma vontade de viver para dentro, ou seja, de me exilar dentro do meu eu interno.

Como?
Deixando o mais possível tudo aquilo que tenha a ver com a vida pública. Decidi expurgar ao máximo a minha intervenção pública nos mais variados domínios, e viver como que num exílio dentro da minha intimidade. É isso que eu vou tentar fazer.

A partir de agora?
A partir de agora, sim.

Mas a sua editora, a Babel, é um projecto relativamente novo, que não lhe deve permitir sair e exilar-se facilmente. Ou está a preparar-se para deixá-la?
Não vou deixar a Babel, mas desde o primeiro dia que expliquei às pessoas que trabalham comigo que ela terá tanto mais sucesso quanto mais depressa depender menos de mim. E depois tenho todas as outras coisas que me prendem em termos de compromissos pessoais ou cívicos...

13 coisas.
Sim. E a maioria exige tempo, que é a única coisa que não posso multiplicar. Eu bem tento, durmo pouco e começo cedo. Começo a ler ou a escrever entre as quatro e as cinco da manhã. Cheguei a um ponto em que reivindico para mim um tempo, não apenas por razões de interesse pessoal, mas também de interesse de gerir o tempo que me falta e de começar a olhar com serenidade para esse calendário. Esse é um exercício que NÃO  me perturba, a ideia da morte.  

Hoje, com a doença, perturba-o mais?
Não, de todo. Dá-se a circunstância de eu saber que, não sabendo quando ela virá, até lá vou ter limitações e, portanto, tenho de dar prioridade às coisas que considero mais importantes, em detrimento das urgentes. Senão deixo-me enredar nas coisas urgentes do dia-a-dia e as mais importantes...  vamos ver se consigo livrar-me delas.

E as suas prioridades alteraram-se?
Em termos de convicção ou de consciência, não. Em termos de ser coerente e levar as coisas até ao fim, sim. Não basta reconhecer que há coisas mais importantes que outras e que passamos os dias a desperdiçá-las.

Essa ideia de que se vai retirar, é o contrário do que está a acontecer neste momento.
Houve essa conjugação de factores decorrentes de circunstâncias que são alheias à minha vontade!

Mais ou menos...
São corolários de uma opção que se fez.

Estou a falar do projecto de revisão constitucional do PSD. Agrada-lhe a sensação de poder estar a intervir no futuro de Portugal?
Eu nunca mais aceitei qualquer tipo de participação política directa, depois de ter estado quatro anos no governo do professor Cavaco Silva, e ter saído quando ele saiu, em 95. Por isso entendi que este desafio era mais um encargo do que um cargo. Fi-lo por acreditar sinceramente naquilo que é preciso para Portugal. Aflige-me imenso que haja uma espécie de autismo colectivo sobre o estado real do país e daquilo que é necessário fazer.

Esta seria mesmo a altura ideal para falar destes temas? Com a crise, o desemprego, não há nenhum interesse político em fazer isto agora.
Interesse público existe. No sentido de gerir uma agenda em proveito próprio, não. Pedro Passos Coelho anunciou isto no congresso e ele não tem sido pessoa de esquecer os seus compromissos e vacilar nas suas convicções.

Mesmo aqueles que não concordem com as suas posições hão-de reconhecer que tem sido coerente e corajoso na forma de as defender.
Acha que ele já tem tudo para ser primeiro-ministro?
Está preparado para ser primeiro-ministro já. Para além das muitas capacidades políticas dele, e pessoais, julgo que é a pessoa que tem condições para imprimir um rumo de efectiva mudança para o futuro colectivo de Portugal.

Ficaria com problemas de consciência se o PSD perdesse votos com esta proposta ou isso não lhe importa?
As eleições não são determinadas por isto. Eu nunca concorri a eleições e evidentemente não vou concorrer, portanto não posso responder pelo decisor útil que é quem tem que assumir esse protagonismo. Agora, ao longo da minha vida procurei sempre fazer aquilo em que acredito e não aquilo que fosse apenas mais conveniente. Sempre me fez impressão aquela pergunta que se faz nos partidos, "mas o que é se ganha com isso", ou "qual é a vantagem?". Acho que há coisas que devem ser feitas mesmo quando não haja conveniência própria alguma, ou até quando se tornam mesmo inconvenientes. Para o bem de todos é preciso fazer aquilo em que se acredita, ainda que isso não traga qualquer tipo de vantagem para quem o faz. Neste momento, o máximo que se pode dizer é que a proposta teve um impacto negativo nas sondagens. Mas eu nunca subestimo uma espécie de maturidade intuitiva do povo português. Há uma omnisciência colectiva que fez, a meu ver, olhando retrospectivamente para os resultados eleitorais, que nunca se tenha enganado.

O que está a dizer é que por vezes o PSD não merecia ganhar?
Sim.

Com Manuela Ferreira Leite, por exemplo?
Sempre que isso sucedeu. Algumas vezes o poder ganha-se, a maior parte das vezes perde-se. E olhando para trás, julgo que os portugueses sabem distinguir perfeitamente as coisas e a credibilidade não é confundida com a ilusão.

Acha que Cavaco Silva foi pior Presidente do que primeiro-ministro - de cujo governo fez parte?
Não. Acho que é um bom presidente, mas que a marca como primeiro-ministro ficará mais profunda. Na política não há exactidão, é um jogo permanente de escolhas. Mesmo quando não as queremos, estamos sempre a fazê-las, nem que seja por omissão. E é um jogo de escolhas ainda por cima num domínio em que não há certezas, mas algumas vezes certamente que se erra.

Como no Verão do ano passado, com o episódio das escutas...
Digamos que foi um período que não é caracterizador do modelo do mandato. Abstraía-me agora de fazer juízos sobre cada uma das coisas. Posso dizer que votei nele. E não só não estou arrependido como vou repetir, sendo ele candidato.

Estaríamos melhor servidos se tivéssemos D. Duarte como rei em vez de Cavaco Silva como presidente?
Não faço esse paralelo porque o rei tem uma função diferente de um presidente. Para mim, o rei é um símbolo de unidade, não apenas da colectividade mas de gerações, de projecção no tempo. É alguém que no momento presente encarna um passado e é uma projecção para o futuro. Acho neste sentido desprovidas as comparações abstractas sobre se a monarquia é melhor que a república. Porque isso faz sentido num contexto particular de uma realidade concreta.

E faria sentido agora para Portugal?
Com outro quadro institucional. Temos um exemplo muito próximo de nós, o da Espanha, em que o regresso da monarquia veio de par com o advento da democracia. Em Portugal temos um bocado a percepção de que é uma coisa do passado. Hoje nenhuma monarquia é compaginável com a falta de democracia. E repúblicas sem democracia há muitas, do Zimbabué à Coreia do Norte. O bem essencial a preservar não é a titularidade do regime, se é um rei, se um presidente, mas é a repartição do poder e as regras de vida em sociedade, portanto, a democracia é que é o valor de ouro.

Eu se fosse correspondente de um jornal estrangeiro deliciava-me com esta história de ser um monárquico a mudar a constituição de uma república. Não é irónico?
É um cidadão português militante do PSD. Os monárquicos não são cidadãos diminuídos. Têm a plenitude dos direitos e dos deveres. Isso passa por cumprir as regras do estado de direito democrático, que, neste momento, é uma república.

Fala em retirar-se. E se tivesse um convite para um governo?
Na vida tenho tido cada vez mais dúvidas e menos certezas. Mas nas certezas que guardo uma delas é essa.

Acha a política é um desperdício?
Exercer o poder é algo muito grave, nem toda a gente tem a dimensão do que significa, o que é determinar a vida de terceiros. Essa para mim é a verdadeira dimensão do poder. O que eu hoje acredito é que o poder maior que alguém pode ter mesmo é dentro de si, de resistir a ter qualquer outro poder. O poder de não ter poder.

É uma liberdade?
É um caminho para a liberdade, pelo menos. Eu estive quatro anos num governo. Com 31 anos tive assento no conselho de ministros e fui porta-voz. E um exercício que fazia era todos os dias obrigar-me a pensar que cada dia que passava não era mais um dia com poder, era menos um que faltava para me ir embora. O poder é viciante.

Aos 31 anos, era certamente inebriante.
Não, inebriante não foi.

Nunca pensou que não era suficientemente experiente?
Não. Embora não tivesse feito nada para lá estar, foi uma das primeiras vezes na vida que confiei no critério de confiar em quem confiava em mim. Esforcei-me por merecer essa responsabilidade e por fazê-la profissionalmente e com seriedade. Essa foi uma das vezes em que a minha vida mudou, não pela minha vontade. O que me levou a concluir por um paradoxo da minha própria vida: a circunstância de eu ser muito voluntarista, de acreditar muito na vontade como força de afirmação própria, que as pessoas têm de ser fortes, resilientes. Mas depois as coisas verdadeiramente importantes na minha vida, não fui eu que as escolhi, foi a vida que as proporcionou.

O destino, em que já disse não acreditar?
Não. Seria fácil acreditar no destino. Mas eu, quer racionalmente, quer por instinto, intuição, sinto, acredito e gosto de pensar no livre arbítrio como factor de...

Devir?
Não é outra coisa senão aquilo a que podemos chamar liberdade. Mesmo na física quântica hoje sabe-se que as mesmas causas nas mesmas circunstâncias não produzem sempre os mesmos efeitos.

Gosta de fado?
Não tenho um disco de fado e sou incapaz de ouvir fado fora das casas de fado. Habituei-me agora algumas vezes a ouvir fado em Alfama, onde tenho o atelier. É uma daquelas coisas que eu acho que faz sentido num sítio próprio, no momento próprio.

E é uma questão de gosto?
Com a música, gosto ou não gosto apenas pela sensação de gostar, não por adesão conceptual ou preconceito. O fado simplesmente não me desperta os sentimentos, que é isso que a música de que se gosta nos deve fazer. E como não acredito na saudade como valor, também não acredito numa projecção no futuro dessa saudade, cuja emanação é o fado. Uma espécie de saudade do futuro.

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