Entrevista com Álvaro Magalhães

No Largo do Pinheiro Grande, na Mata dos Medos, vive um grupo de animais curiosos, pensadores e sempre com muitas questões existenciais. Neste que foi anunciado como o último livro da série <i>Contos da Mata dos Medos</i> mas que pode não o ser porque bastará as personagens falarem ao ouvido do escritor para o convencerem a dar-lhes vida outra vez, os nossos amigos vão descobrir o amor. Essa «intempestade» que anda no ar (e no chão também) e tanto pode ser uma coisa que se apanha como <i>O Lugar Desconhecido.</i> Em véspera do Dia dos Namorados, a conversa com Álvaro Magalhães sobre este sentimento que suspende o tempo. E é por isso o nosso triunfo sobre a morte.
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O seu mais recente livro, os Últimos Contos da Mata dos Medos, que é para crianças, mas que os adultos também podem e devem ler, tem como título O Lugar Desconhecido. O amor é sempre um lugar desconhecido, até para quem já o viveu?

É, é sempre um lugar desconhecido. A paixão arranca-nos da razão, do mundo em que estamos, e empurra-nos para um sítio que é absolutamente imprevisível.

Para quem não conhece, na Mata dos Medos vive um grupo de amigos - o Ouriço, a Toupeira, o Coelho, o Chapim, o Caracol e outros que se vão juntando. A maioria de nós é como o Chapim, que anda a apanhar bagas e sementes para não ser apanhado pelo amor, ou como o Rato Apaixonado, sempre à procura do amor, mesmo depois de já o ter encontrado?

Há os que procuram desesperadamente e não o encontram e há os que andam a tentar escapar-se, mas acabam por encontrá-lo. Como diz o Rato Apaixonado, podemos estar parados e chegar lá, ao Lugar Desconhecido. Não somos nós que encontramos o amor, é o amor que nos encontra a nós.

E o amor é uma coisa que se apanha, como diz a Ouriça? Acha que pode ser contagioso?

Não sei, é a Ouriça que o diz e quem sou eu para a contrariar? Não devemos contrariar as mulheres. A intenção nesta história era explorar um grande tema universal, o amor, que é a base de toda a literatura. A literatura é feita de amor e de morte, que são os dois mistérios insondáveis, talvez os únicos mistérios da vida. O amor porque está ligado ao início, ao nascimento. A morte porque está ligada ao fim, ao desaparecimento. A vida é o que está entre essas duas noites.

No livro anterior da Mata dos Medos tratou a morte, que era Um Problema Muito Enorme. Agora o amor. Como é que se fala destas coisas às crianças?

A literatura, mesmo a infanto-juvenil, não serve para ensinar, embora noventa por cento das pessoas que escrevem para crianças pensem que sim. Nalguns casos, até devia era servir para o contrário: para desensinar e desaprender, para abalar critérios e conhecimentos adquiridos. Claro que é importante aprender e ensinar, mas não é essa a função da literatura. A literatura serve sobretudo, se é que serve para alguma coisa, para lidarmos com o desconhecido: o amor e a morte. Na minha obra infanto-juvenil, se a analisarmos, a maioria das histórias são de amor ou de amor e morte. Às vezes, a morte e o amor trocam sinergias: o amor porque suspende o tempo e o tempo é o secretário da morte, é ele que faz o trabalho todo, ele é que é o malvado, não é a morte. Ora, o amor tem a capacidade de suspender o tempo e nesse sentido acaba por ser um triunfo sobre a morte.

Mas ainda não me respondeu: como se trata temas como estes pensando que os leitores serão crianças?

Os temas são literários e também são acessíveis aos mais novos. Há a convicção errónea e o preconceito de que as crianças não acedem ao material literário e é exactamente o contrário: elas acedem muito mais facilmente do que os adultos. Os adultos precisam de ultrapassar a sua estrutura. As crianças não, acedem naturalmente, por exemplo à poesia. Portanto, se acedem à literatura, também acedem aos temas literários, depende do modo como os desenvolvemos. O livro sobre a morte - Um Problema Muito Enorme - é talvez o livro mais divertido da série da Mata dos Medos. Se se lembra, as personagens acabam por resolver definitivamente o problema da morte, matando-a. O problema da morte é que o medo atávico que temos dela. E esse medo representa um fracasso da nossa imaginação. O que é que a literatura pode fazer para aclarar estes mistérios? Talvez nada. Aliás, neste O Lugar Desconhecido há uma especialista em livros, que é a Toupeira, que diz que os livros também não sabem o que é o amor. E é verdade: os livros apenas contam histórias, o que a literatura faz é tornar o amor mais visível, mais vivo, mas não o explica.

Por isso é que vamos sempre parar ao Lugar Desconhecido?

O amor é uma exaltação, mas como tudo o que é vivo e o que é humano está sujeito à segunda lei da termodinâmica, isto é, ao princípio da desagregação e da dissolução universais. O amor é fantástico, é intenso, é uma chama, mas como uma chama, ou como o fogo-de-artifício, consome-se, gasta-se, degrada-se e portanto a única hipótese é deixá-lo morrer e fazê-lo renascer. Ou seja, para ele ter vida tem de morrer e renascer permanentemente. Não se pode tentar ter o amor permanentemente. É costume retratar os amantes em situações aladas, mas era mais correcto pô-los talvez a cair porque, depois do enamoramento, é uma queda permanente, é uma queda no abismo, é mais a Alice no País das Maravilhas, por exemplo. Duas pessoas que se apaixonam desistem de si mesmas e caminham uma para a outra, deixando de ter o chão debaixo dos pés. O amor é tão incompreensível, tão enigmático, tão misterioso, tão difícil de explicar, porque é uma mistura de loucura e sabedoria. Acho que é isso que o Rato Apaixonado tenta dizer naquele poema: «Ah, o Amor. Que confusão!/É como uma casa arrumada/por um desarrumador,/ou um piano afinado/por um desafinador./O Amor é assim. É assim o Amor.»

É tudo e o seu contrário...

Exactamente.

Anunciou que este seria o último livro da série da Mata dos Medos. Não vai ter saudades destes animais simpáticos e cheios de dúvidas e questões sobre a vida?

Houve alguma consternação quando o titulei Últimos Contos da Mata dos Medos. Por isso, tive o cuidado de explicar que eram os últimos que eu tinha escrito. Não posso dizer que não vou voltar a vê-los, posso dizer que não tenho projectos para eles nos próximos tempos. Mas não faço a menor ideia se eles têm projectos para mim. Já foi assim que aconteceu antes. O projecto inicial era escrever um único livro e ficou encerrado quando lancei o primeiro, que se chamava Contos da Mata dos Medos. E depois as personagens encontraram-me, falaram-me ao ouvido, convenceram-me a dar-lhes outra vez vida e depois do primeiro escrevi mais três. Acho que é isso que pode vir a acontecer.

Diz que tem uma orelha verde, através da qual «ouve» melhor a infância. Há até quem lhe chame o escritor da orelha verde. Com este livro sobre o amor, ela não ficou mais vermelha?

Sim, ficou corada, como ficam todas as pessoas que são apanhadas pelo amor...

A vida é mais tranquila sem essa «intempestade» que é o amor?

É evidente que podemos escolher a paz, mas se não fossem os distúrbios da afectividade e as irrupções da imaginação não havia criação, não havia regozijo, não havia vida. Aliás, como se diz no poema do Rato Apaixonado, «O amor é uma experiência arriscada/que pode dar para o torto;/ mas se não te acontecer/podes crer que estás tão vivo/ como um morto.»

O Álvaro também é um apaixonado?

Sou, não sei se hei-de dizer felizmente ou infelizmente, mas sou muito apaixonado por quase tudo o que faço. Tenho várias paixões - aqui neste sítio onde estamos [os jardins do Palácio de Cristal] foi o sítio onde namorei, mas sou também um apaixonado pelo meu trabalho...

Vai fazer trinta anos de escrita. Já consegue fazer um balanço? Como foram?

Foram excelentes. Comecei por publicar poesia. Publiquei quatro livros de poesia no início da minha, digamos, carreira, e estava convencido que ia ser um poeta e só ia escrever poesia. Mas depois escrevi o primeiro livro para crianças para a minha filha, quando ela era miúda, O Circo das Palavras Voadoras, e que ainda hoje é um livro lido nas escolas. O tempo, que faz o trabalho da morte, também é o melhor antologiador e se nós tivermos a paciência de esperar ele explica-nos se os livros são bons ou não. Descobri nessa altura que escrever para os mais novos não era nada diferente de fazer poesia. Era a mesma coisa. Obrigava-me a lidar com a delicadeza da percepção da vida. Tinha até impressão que estava mais em contacto com o poético do que quando escrevia poesia para adultos.

É portanto um poeta, mais do que um prosador?

Já tenho cerca de sessenta livros publicados e quando me perguntam quais os que gosto mais ou que salvaria num incêndio, respondo que é um livro que reúne a minha poesia toda e os contos da Mata dos Medos, porque um é poesia e no outro está o poético. Muitas vezes, sobretudo nos poemas para crianças, não encontramos o poético, porque há o preconceito de que tem de ser tudo muito simplezinho, é a prosa às escadinhas, não chega a ser poesia, embora pomposamente lhe chamem assim. Mas às vezes encontramos o poético onde menos esperamos. Uma vez em Barcelona encontrei um livro com o título Poemas Plagiados. Achei muita graça ao título e comprei-o logo. Há muitos livros plagiados mas nenhum deles anuncia o crime no título. E o que é que eram então os poemas plagiados? Eram excertos, não de poemas, mas de textos de publicitários, artigos de horticultura, coisas de botânica, passagens da Bíblia, anúncios de jornal, etc. O autor descobriu bons nacos de poético aqui, ali e acolá e chamou-lhes poemas, muito justamente. É um livro exemplar para explicar o que é a poesia, porque mostra que o poético está em todo o lado, não só na poesia. Outra lição, ainda mais importante, é que a poesia escreve-se mesmo quando não estamos a escrevê-la. (E às vezes quando estamos a escrevê-la, não se escreve). E estes livros da Mata dos Medos tocam o poético, a percepção da vida, a sabedoria dos que nada sabem, que é também a sabedoria das crianças.

É por isso que diz que as crianças acedem melhor à poesia?

Menospreza-se muito as crianças. Mas no centro da minha obra está a convicção de que existe uma inteligência infantil. As crianças não sabem muita coisa, de facto, como nós, que temos um saber enciclopédico, mas isso não é não saber, elas têm um saber intuitivo, que é uma forma poderosa de inteligência e é isso que temos de respeitar quando escrevemos para elas. Os taoístas dizem que pelo saber só vemos a aparência das coisas e que é pelo não saber que chegamos à sua essência. Eu acho que as crianças estão mais perto da essência da vida e do que nós e nessa medida também estão mais perto do amor e da poesia. Nada mais adequado do que um conto infantil para falar do amor, por exemplo.

Tem algum feedback dos miúdos, da forma como lêem e interpretam os seus livros?

Sim, sobretudo em relação ao primeiro livro da série da Mata dos Medos, que é um livro muito lido. Fazem trabalhos incríveis. Tenho um armário em casa, uma espécie de ouriçário, só para guardar ouriços que eles me mandam, coisas incríveis. A forma como eles percebem as personagens e a história é excelente, ultrapassa as minhas expectativas. Há pessoas que pensam que para chegar aos mais novos é preciso descer, mas é exactamente o contrário. Para comunicar com eles é preciso subir, temos de ultrapassar a nossa estrutura e libertar-nos. Uma vez perguntaram a um teórico do teatro, o Stanislavsky, como se faz teatro para crianças e ele respondeu uma coisa que também se aplica à literatura: faz-se como se faz teatro para adultos, mas melhor.

As personagens da Mata dos Medos estão sempre a inventar coisas e pensam muito. Têm tempo para pensar. É isso que falta aos adultos: tempo para pensar?

É. Falta-nos tempo, falta-nos espontaneidade, falta-nos força anímica, falta-nos infância. É isso, na infância temos isso tudo. E trocámos isso tudo por uma espécie de razão.

O Álvaro não saiu completamente da infância?

Não, soube preservar um naco de infância e, de certa forma, escrevendo para os mais novos estou sempre a alimentá-la. Às vezes, saio ao fim do dia para me encontrar com os meus amigos e falam-me do FMI, que vai entrar em Portugal, e eu não faço a menor ideia do que estão a falar, porque passei o dia a escrever histórias de fadas e duendes. Escapo imenso à realidade. A literatura permite-me isso. Sempre achei a realidade um bocado insuportável. Como dizia o meu poema do Guarda-Redes Míope, que era eu, queria lá saber do que estava a acontecer, o que eu queria era saber o que poderia ter acontecido. Para mim, a primazia é sempre da imaginação e a literatura dá-me a possibilidade de passar o dia nesse sonho diurno, nesse alheamento do real. Estou fechado no meu escritório, com três gatos, a ouvir Mozart ou algo do género, e é como se estivesse numa ilha. Passo dias e dias assim e até me custa frequentar a realidade. Há quem diga que se não sonhássemos durante a noite enlouquecíamos, eu acho que enlouquecia se não sonhasse também durante o dia.

E como é que aqueles que o rodeiam lidam com essa sua fuga da realidade?

Vivo com a minha mulher e três gatos. Os gatos lidam maravilhosamente com isso. A minha mulher também. Quando começámos a namorar, há mais de vinte anos, ela gostava de adormecer, à noite, com o barulho da minha máquina de escrever. Aliás, este livro é-lhe dedicado, por «um dia me ter levado ao Lugar Desconhecido», e também por ter a grande paciência de me aturar.

De vez em quando lá o puxam para a realidade, não?

Como diz o Woody Allen, a realidade é horrível, mas é o único sítio onde se pode comer um bom bife e a mim de vez em quando apetece-me um bom bife e lá salto para a realidade. Há coisas boas na realidade, é preciso é escapar às más.

Onde é que vai desencantar as suas personagens? Não só estes animais simpáticos da Mata dos Medos, como o seu recente Vampiro Valentim e família?

São elas que vêm ter comigo. Estão sempre a bater-me à porta e eu estou sempre disponível. É preciso criar essa disponibilidade para que as coisas aconteçam, para podermos arrancar as coisas de lá de onde elas estão, do nada. Nessa altura, elas vêm ter connosco. Eu não conseguiria imaginar tanta coisa. Olhe, agora veio ter comigo uma personagem que é um gato, chamado Lucas Scarpone. Vai nascer em Abril e tem a linha gráfica do Vampiro Valentim. É um gato italiano, que vive num mundo de gatos, nas margens do lago de Como... Estou muito envolvido, apaixonadamente a dar vida ao Lucas Scarpone.

Sei que alguns dos seus livros já são publicados no estrangeiro. Como é vê-los traduzidos noutra língua? Não é estranho?

Completamente. O castelhano, então, é muito decepcionante porque é uma língua muito dura. Basta pensar que o título do primeiro livro do Valentim, que, em Portugal, é Vampiros ou nem por isso, em Espanha transformou-se em Unos Vampiros Nada Corrientes [ri]. Nunca pensei ter um livro meu com a palavra corrientes no título. No Brasil também fizeram algumas adaptações, inclusivamente com palavras que não conhecia. Havia uma, tomara eu lembrar-me, tão bonita, tão delicada, que fiquei encantado e até fui ver ao dicionário. De facto, correspondia exactamente ao que eu queria dizer, melhor até. Enfim, há coisas que nos agradam e outras que nos desagradam. Mas é uma satisfação muito grande. Nós nunca sabemos quem são os nossos leitores.... sabe, outro dia encontrei uma fotografia, num blogue, de uma rapariga francesa a ler um livro numa cama de rede, no meio de um bosque, entre duas árvores. E uma amiga perguntava: «Estás muito bem instalada, o que é que estás a ler?» Ao que ela respondia: «Um livro de um escritor português» (era um livro meu da série Triângulo Jota). Guardei aquela fotografia religiosamente e até escrevi um poema que se chama A leitora, que também guardei. Para um escritor apanhar um leitor em flagrante tem de dar vinte voltas ao mundo. Ou então ter internet... que é quase a mesma coisa [ri].

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