Entrevista a Olga Roriz

«Pedaço de terra». É o que diz significar o seu nome em português arcaico. A sua terra do Norte que «cheira a mimosas, a mar, a rios, a flores e a verões». Viana do Castelo. Foi de lá que veio com 2 anos para ser bailarina, e para se tornar, aos 54, um nome incontornável da dança, a que dedicou ininterruptamente o descompasso do coração e um belicismo próprio que lhe norteia a alma<em>. Workaholic</em> assumida, a bailarina, coreógrafa, directora da Companhia Olga Roriz, está prestes a estrear <em>A Sagração da Primavera </em>no Centro Cultural de Belém, em Lisboa. <br />
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Olga Roriz nasce em Viana do Castelo, a 8 de Agosto de 1955. Com apenas 4 anos inicia a aprendizagem de dança em Lisboa, com Margarida de Abreu. Continua os estudos na Escola de Dança do Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), com Ana Ivanova e David Boswell, e integra o corpo de baile de todas as temporadas de ópera do TNSC. Em 1974, acaba o curso na Escola de Dança do Conservatório Nacional de Lisboa e com 21 anos integra o elenco do Ballet Gulbenkian, dirigido por Jorge Salavisa. Em 1978, cria a sua primeira coreografia para o Ballet Gulbenkian – onde dirigiu mais de vinte obras – e que marca o início de uma carreira fulgurante, com acesso a bolsas de estudo, prémios e insígnias pelo seu enriquecimento da cultura portuguesa. Os seus trabalhos têm sido apresentados nas mais importantes cidades europeias, bem como nos Estados Unidos, Brasil, Senegal e Egipto. Com colaborações regulares na ópera e no teatro, criou a sua própria companhia, em 1995. Ainda hoje lamenta que o seu extenso e reconhecido currículo ainda não lhe tenha concedido, por exemplo, as merecidas condições de trabalho que lhe garantam, a ela e a todos os artistas, a «estabilidade precisa para trabalhar com serenidade». 


A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, a 29 de Maio de 1913, terminou com vaias e assobios no Teatro dos Campos Elísios, em Paris, e foi considerada um dos maiores escândalos artísticos de todos os tempos mas também um marco na história da música e da dança. Passados 93 anos, chega a Lisboa pela sua mão. Ainda é considerada uma obra provocatória e desafiadora?
É uma obra desafiadora para o criador, para o coreógrafo, sim. Já não o é, como dantes, para o público. A Sagração é uma peça importantíssima na história da música – e não só, porque se olharmos bem para a coreografia de Stravinsky há ali uma série de elementos que revolucionaram e desafiaram tanta coisa, que se tornaram tão geniais como intemporais. A parte final é linda, o solo final da Eleita é magnífico, embora na minha opinião aqueles fatos da versão original sejam um pouco «apalhaçados». É uma peça com muito peso, carrega o facto de já muita gente a ter adaptado. É uma composição excepcional, cheia de força e muito bem construída. Há as adaptações de O Lago dos Cisnes, há as de Giselle. Mas a Sagração tem um guião que a torna diferente, determinadas características indizíveis. É um marco na carreira de um coreógrafo.

É assim que a sente, enquanto criadora?
No meu percurso coreográfico nunca quis fazer esta peça, e no momento em que a aceitei percebi imediatamente que o problema seria encontrar a «minha» Sagração. Foram trinta anos a não querer fazê-la. Já tive a minha terra do Norte, a minha terra de ninguém, as minhas troianas, a minha Isolda, tudo isso são os meus rituais, para quê estar a confrontar-me com uma peça comparável a outras? Para quê fazer uma coisa que já foi tão feita e tão bem feita? Para quê? Mas a verdade é que houve um momento em que comecei a pensar ao contrário. Ficou a mexer comigo. Porque não?

Pelo medo da comparação com outras coreografias?
Talvez, inconscientemente. Penso que é natural. Gosto muito dos meus projectos, das minhas ideias, de fazer coisas, de refazer coisas, de retirar o cerne de Tristão e Isolda, não contar a história, e na Sagração estou necessariamente mais espartilhada. A verdade é que fiquei a pensar. Achei que também tinha que ver com aquilo, porque é uma peça muito ritualista, eu sou assim, muito sofrida, o meu movimento é muito pesado, muito térreo, muito agarrado ao chão, além de que já trabalhei bastante o movimento de grupo. Por isso, até posso coreografar aquela música que está acoplada a uma história escrita pelo próprio compositor, e não uma história que o coreógrafo inventou para aquela coreografia. Acho que não pode atropelar-se o guião e isso tem sido tido em conta, e ainda bem, por todos os coreógrafos. Puxando mais à esquerda, mais à direita, com mais erotismo, mais selvagem, menos sedutor, mais movimento, todos eles, de algum modo, cumpriram o cerne da Sagração: o ritual, o sacrifício de dançar até morrer.

Como foi consigo?
No meu caso, posso avançar com duas coisas que são importantes: os dois sexos – feminino e masculino – estão muito diferenciados. A personagem do Sábio prepara tudo, traz os homens, mete-se no meio, faz-se esquecer para voltar a renascer. É ele que prepara o terreno. Há um poder, uma sabedoria, uma energia e um carisma trazidos apenas por ele. O prelúdio da peça é o solo deste homem, é uma herança do seu passado. Para mim, existem dois guiões: um subjacente à obra e outro que não é tão depurado e condicionado. Penso que Stravinsky se sentiu na obrigação de transpor a composição em palavras para que o coreógrafo tivesse uma base inspiradora, todas as partes têm uma explicação, o que se deve passar naquele momento a nível de cena. A maioria dos coreógrafos foram, e muito bem, ao longo do guião, modificando aqui e ali, integrando novos elementos, outras introduções, sem desperdiçar nada. A minha Sagração, por exemplo, tem um carácter mais masculino, enquanto a de Pina Bausch, por exemplo, é mais feminina.

É a sua adaptação preferida?
Quanto a mim é a melhor, talvez porque também me revejo no seu movimento, linguagem e forma.

E como é a sua Eleita?
A minha Eleita quer dançar até à morte. Na própria história, a Eleita sente-se uma privilegiada por poder morrer a dançar, não há drama absolutamente algum. E descobri que essa Eleita não é só uma personagem, essa mulher também sou eu!

É uma projecção sua?
Sem dúvida. Mas porque é que eu, Olga, não posso querer dançar até morrer? Mas atenção que não cheguei lá para modificar ou embelezar a história, foi através de um caminho interior, meu. Se fosse mais nova, não pensaria nisso, mas agora penso, e esta mulher está feliz por poder morrer a dançar. O que constitui aqui uma grande mudança para o fim da segunda parte: as outras mulheres querem estar no seu lugar, não chega a haver competição, aquilo é um sacrifício, sim, mas ela luta para o afastar, vai estar cheia de paixão e quer ir para lá.

Dito assim parece extenuante.
Dramaticamente há um cansaço, um desgaste enorme. Ao mesmo tempo, penso nisto como uma influência de Electra, o meu último solo. Aquelas desistências, o estar e o romper para a dança. A minha ideia é tentar utilizar isso na Eleita, dar-lhe o cansaço, ela vai lutar contra o cansaço, mas vai mostrar ao público esse cansaço. Há um deixar-se começar para ir em frente, novamente parar, respirar e começar outra vez. Há uma desistência para recomeçar. A Eleita pode ser muito mais eleita quando virmos a bailarina Marta cansada e a recuperar outra vez. É o momento de verdade, é o momento de naturalidade e de aceitação dos nossos limites, na realidade. E sendo supercalma, superfeminina, com umas extensões belíssimas, esta bailarina é uma força da natureza. E tem uma pele branca, tão branca! [risos]

Como a escolheu?
Foi uma coisa muito bonita, esse momento. Ninguém sabia quem era a Eleita até ao sétimo ensaio. Nem mulheres nem homens. Fiz a escolha no próprio ensaio, mas antes chamei os homens ao meu camarim e disse-lhes o que tinham de fazer.  E assim foi. Uma das partes é o momento antes de ela ser escolhida em que aparecem 11 batidas muito fortes. São 11 mulheres e 11 batidas. E naquele momento foram «sugadas» uma a uma até restar a Eleita. Foi tão forte que fiquei com as perninhas a tremer e a minha ensaiadora de lágrima no olho!

Por que decidiu fazê-lo dessa forma?
Porque achei que isto traria uma mais-valia, um enriquecimento artístico que se reflecte no próprio espectáculo. Traz uma memória do momento real em que estiveram naquele sítio e não sabiam se iam ser escolhidas ou não. Estavam todas em pé de igualdade. Fizeram tudo como se pudessem ser ou não a personagem.

Partindo da dança como algo incontornável na sua vida, o que mais tem sido incontornável na vida de Olga Roriz?
A dança. Ponto. Vai tudo para trás, esqueço tudo, divorcio-me de tudo, deixo tudo, separo-me de tudo, para ser eu, para ser só eu, a criadora. As minhas filhas bem o sabem, mas eu sempre pensei, sempre acreditei que elas, mais cedo ou mais tarde, quereriam ver a sua mãe no activo, não sei se é felicidade, não sei o que é, pode não ser felicidade…

Plenitude...?
Plenitude será com certeza. Não quero que olhem para mim como uma mãe que se castrou por causa dos filhos, porque eu não acredito nisso, os casais que não se separam por causa dos filhos vão sentir-se infelizes. Eles e os  filhos.

Isso não é assim tão linear.
Obviamente que tudo isto tem de ser doseado. Eu não doseei isso muito bem. Não foi só por mim, mas porque me impuseram coisas. Porque de repente tenho uma pessoa que me diz: «Pronto. Agora vais deixar a dança porque tens uma criança.» Eu, passados três dias, já não estava em casa. Como é possível alguém conhecer-me tão mal ao ponto de querer castrar a minha liberdade? E pensarem que é possível esta mulher existir sem continuar a fazer aquilo que se propôs desde sempre, pois já não se conhece doutra maneira?

Aos quatro anos já dançava.
Três, dois anos… Quero dizer, isto não se compreende… os meus pais mudaram de cidade e vieram para Lisboa, sacrificaram-se imenso, foram muito malucos, eu trabalhei imenso e depois de repente tudo acaba por causa de um filho? Não, não encaixava na minha cabeça.

Mas quis ter filhos?
Sim, como todas as outras minhas colegas bailarinas tiveram.

Nunca pensou que pudesse ser um entrave à sua escolha de vida?
Não, nunca pensei nisso. Obviamente que há um período de interrupção, mas tudo é concretizável. Dou-lhe um exemplo: no dia em que tive a minha filha mais velha, estava a ensaiar O Lago dos Cisnes, depois fui para casa, comi e fui para a clínica e tive a minha filha. Acabei de ter a criança e a minha barriga fez flop, voltou ao sítio quase por magia, obviamente que tinha 20 anos e tinha estado a trabalhar durante toda a gravidez, estava muito musculada, muito tonificada, mas foi tudo ao sítio. Foi tudo muito orgânico e natural. Lembro-me de os médicos ligarem para uns e para outros porque ninguém achava aquilo normal!

E a Olga?
Eu estava assustada. O que é que se passou? E não me diziam nada, a minha barriga estava no sítio, quase instantaneamente. Nunca parei de dançar. E claro que sim, que dei de mamar, seguiram-se as creches, as avós com quem pude contar, e pronto, cada uma seguiu a sua vida, eu também tenho horário das nove às seis, naturalmente que estive ausente, com digressões. Mas tudo se faz, toda a gente o fez.

E o tempo, é castrador para si?
Também nisso fui e sou privilegiada, acabei de fazer um solo de uma hora (Electra) em Janeiro, com 54 anos, acho que é fantástico, obviamente que tenho as minhas lesões, e cada vez tenho mais. Levanto-me todos os dias de manhã e penso no que é que me dói, mas já estou habituada às dores. Nada me impede de coreografar a Sagração exactamente como eu quero.

Alguns dos seus escritos denunciam uma mulher que sente a passagem da vida efémera e breve. Certo?
Passa. A vida passa muito depressa... Eu sou uma mulher triste. Triste, triste não digo, mas talvez melancólica, não sei. Gosto muito da tristeza, é um sentimento muito bonito.

Tem medo de envelhecer?
Não, não tenho medo. Tenho pena. Tenho pena de morrer. Gostava de estar aqui mais um bocadinho, aí até aos 150, depois já podia ir [risos]. A minha esperança – que é uma palavra de que eu não gosto nada, põe-nos assim para trás como um compasso, um período de espera, parece uma coisa muito religiosa, muito católica, ui, muito instituída – é que se morrer de forma natural que seja porque não me apetece estar cá mais, porque estou velhota e devo ir. Agora não, neste momento não, de maneira nenhuma, e aí sim, penso muito nos filhos.

E nos seus pais?
Penso nos meus pais. Que pena eles não saberem o que está a passar-se! Porque os pais fazem um esforço tão grande pelos filhos e às vezes não têm oportunidade para os ver. No meu caso, e porque comecei muito cedo, tive sorte, eles ainda assistiram ao meu reconhecimento, mesmo como coreógrafa. O meu pai, por exemplo, ainda foi ver muitas coreografias minhas à Gulbenkian.

Como era a vossa relação?
Fantástica! Eram duas pessoas… a minha mãe louca, o meu pai um pobre coitado [risos]! De uma sensibilidade... Chorava por tudo e por nada, mas foi o homem que me deu dois ou três ensinamentos, aqueles pilares de vida.

E quais foram?
«Para seres alguma coisa, está no topo. A meio termo não vale a pena.» Era assim que ele me falava. Eu também já pensava nisso, mas dito pelo próprio pai... E mesmo naqueles momentos em que estamos mais perdidos na vida, ele só queria que eu fosse feliz. «Vai ser feliz, anda para a frente», era o que ele me dizia. É um privilégio ter recebido esta herança.

E a sua mãe?
Às vezes era uma grande confusão, porque a minha mãe era uma pessoa muito mais virada para o exterior, para a sociedade, preocupada com o que outros vão pensar, e eu tinha estes dois lados.

Era uma pessoa conservadora?
De modo nenhum. Nada. Com 60 anos, a minha mãe foi estudar comigo, fez vários cursos. Passava a vida no cinema, no teatro, nunca pareceu uma mulher velha, pelo contrário, era uma mulher muito para a frente. Louca, sim, porque exuberante. Tenho algumas coisas dos dois. Já tive mais da minha mãe, que fui aprendendo a dosear, fui-me acalmando. A minha mãe era muito intensa, passional, exorcizava-se através da escrita, era jornalista, eu faço-o através da dança, nesse aspecto, é um exorcismo mais físico, mais carnal, no meu caso. Mas ela tinha também uma energia muito física.

«No peito, um descompassado coração e na mente, uma guerreira que me há-de matar.» É assim que se define na sua biografia, lançada há cinco anos. Tem lutado em muitas frentes?
Pois… [risos]. Levo-me até ao limite das minhas forças. OK, para lá do limite. Isso é ser a incansável guerreira, eu sou a eterna Eleita de mim mesma. É o lado físico, cerebral. Agora não me confronto porque acima de tudo sou uma solitária, vivo sozinha, não tenho ninguém a chatear-me. Às vezes faço a festa, deito os foguetes... [risos] Sou workaholic, isso de certeza. Sou perfeccionista, mas não sou obsessiva, tenho é um lado estético muito forte, gosto de ver tudo parametrizado. Agora estou para aqui a olhar para o seu papel e a reparar se tem os parágrafos justificados, se está tudo direitinho! [risos]


ABISMO DE PAIXÃO
«A Sagração é um desafio, um risco, um precipício no abismo ao qual loucamente me lanço com toda a minha paixão», Olga Roriz, Outubro 2009.
Passados quase cem anos desde a estreia de Le Sacré du Printemps, de Igor Stravinsky, coreografada pelo célebre Nijinsky, no Teatro dos Campos Elísios, em Paris, a 29 de Maio de 1913, é a vez de Olga Roriz sagrar a Primavera no mesmo dia, com estreia absoluta no Centro Cultural de Belém. Acompanhada ao vivo pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, a peça contará com um elenco de 26 bailarinos e estará em cena até 2 de Junho. É um ballet em dois actos, que conta a história da imolação de uma jovem sacrificada como oferta ao deus da Primavera, num ritual primitivo, a fim de trazer boas colheitas para a tribo. A peça é considerada uma das obras mais controversas na história da arte. A sua estreia, em 1913, desafiou todas as regras e originou um dos maiores escândalos artísticos de todos os tempos, uma vez que a plateia não queria acreditar no que via. Diz-se que as luzes do teatro parisiense foram várias vezes acesas para que se acalmassem os ânimos. Mas a verdade é que até aos dias de hoje a música revolucionária de Stravinsky ficou conhecida como uma das maiores, mais influentes e mais reproduzidas composições da história da música erudita do século XX.

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