Entre o paraíso de Beethoven e o inferno da ultraviolência
Palco quase nu, com janelas que dão para a rua, ao fundo. No centro do campo visual, um piano e uma orquestra (de brinquedos), mesmo por baixo do vidro inclinado que às vezes se torna espelho. Do lado esquerdo, uma porta com néon azul, como se fosse o caminho que leva ao Céu. Do lado direito, uma porta com néon vermelho, como se fosse a entrada do Inferno. É neste lugar intermédio, espécie de purgatório sem adereços, que se cruzam as bizarras personagens de Uma Laranja Mecânica - Uma Peça com Música, a versão teatral da famosa novela Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, feita pelo próprio. O espectáculo estreia esta noite, às 21.30, no Grande Auditório da Culturgest, em Lisboa.
Quem descobriu a história de Alex - adolescente adepto da "ultraviolência" e da música sinfónica de Beethoven - no filme de Stanley Kubrick (A Clockwork Orange, 1971) vai reconhecer os traços gerais da narrativa. Estão lá as rixas dos rapazes sem tino nem moral; o bar Korova, onde se bebe "moloko" (leite); as cenas bastante gráficas de violação e homicídio, transformadas em sórdidas coreografias; a traição que lança Alex nos labirintos de um sistema prisional diabólico e demagogo; está lá a voluntária lavagem ao cérebro do criminoso em busca do sacrifício que o redima (um tratamento pavloviano que associa os impulsos agressivos - mas também a adorada música de Beethoven - a um tormento físico paralisante); está lá o desastre humano que resulta de tudo isso; e até as muitas frases ditas em nadsat, o calão que mistura (deturpando-as) palavras inglesas e russas.
Mas depois está também, o que faz toda a diferença, o capítulo final da história que Kubrick, ao adaptar a versão americana do livro, simplesmente anulou. Um final mais optimista, em que Alex cresce (deixa de ser novo, essa "espécie de doença") e reforça a vitória do livre-arbítrio sobre o condicionamento da vontade, aplicada pelo poder opressor do Estado.
Manuel Wiborg, encenador da peça, realça a inteligência da leitura dramatúrgica de Burgess, ao adaptar o seu livro para uso de qualquer grupo teatral. "Ele escreveu isto depois do filme, para pôr os pontos nos ii em relação ao Kubrick. Vê-se que é uma obra muito pensada. O que aliás só me facilitou a vida", diz Wiborg, não escondendo um sorriso.
A habilidade de Burgess está no recentramento da narrativa, que passa pela condensação extrema das cenas mais conhecidas do filme (toda a parte inicial, aqui abreviadíssima) e pelo desvio do foco da história, agora muito mais sobre a resistência de Alex aos métodos científicos - capazes de o obrigar a ser bom - do que sobre a sua história de marginal transgressor. Wiborg reconhece, ainda assim, a dificuldade de descolar a memória do filme da cabeça dos espectadores.
Responsável pela "orientação musical" do que se vê em palco, José Eduardo Rocha orquestrou e adaptou a partitura escrita por Burgess (a partir de pastiches dos principais temas das sinfonias de Beethoven), juntando-lhe "algumas coisas que faltavam e sobre as quais ele apenas dá sugestões". Como é seu timbre, JER recorre a instrumentos de plástico (entre os quais um violino Chicco) "O Manel disse logo que os brinquedos tinham para ele um sentido dramático muito grande, como têm para mim." Por outro lado, o frenesim festivo que provocam, sempre à beira do delírio, adequa-se particularmente bem ao espírito do texto.
O espectáculo está em cena todos os dias, até ao próximo domingo.