Entre histórias e memórias

Os barbeiros de Lisboa parecem prestes a depor as suas armas. Pelo menos na outrora concorrida Baixa da capital, nos estabelecimentos dedicados ao bom visual dos homens portugueses, tudo aponta para que dentro de pouco tempo tesouras, pentes, escovas e navalhas pouco mais sejam do que uma recordação desta «Lisboa de outras eras»...<br /><br />
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«Tudo muda neste mundo excepto os barbeiros, os costumes dos barbeiros e o que diz respeito a barbeiros. Isso é que nunca muda.» Nunca? Pouco falta para que o tempo desdiga Mark Twain, que com estas palavras abriu uma vez uma crónica sua. Talvez nessa América do século XIX, quando duas «garras» lhe passavam pelo cabelo, não lhe tenha passado também pela cabeça que, um dia, seriam os próprios barbeiros a deixar este mundo, levando com eles os seus costumes e tudo o que lhes diz respeito. Na Lisboa dos nossos dias, poucos são os que ainda ganham a vida com a arte de manejar a tesoura e a navalha. E quando a mão lhes faltar, apenas a história se poderá contar…
«Já deu o que tinha a dar, quem vier atrás que feche a porta», suspira, resignado, Bernardo António Moutinho, de 75 anos, há mais de uma década a cuidar de barbas e cabelos na Barbearia Torres. Não são necessárias perguntas para compreender que o movimento no rés-do-chão do número 83 da Rua do Ouro da Baixa lisboeta já não é o que era. Quatro pessoas aguardam a sua vez, e nenhuma é cliente da casa: José Pereira, de 90 anos, barbeiro desde os 11 e um dos proprietários do estabelecimento; o seu sócio, António Magalhães, de 76. Adelino António Reino, o segundo mais velho, com 86; e uma senhora, sentada ao fundo, encarregue da manicura e interessada em preservar o anonimato. Estão todos à espera…
«Às vezes passam duas ou três horas sem entrar um cliente», confessa Moutinho, que aproveita para dar à língua (já que não pode dar aos dedos): «Nunca na vida me passou pela cabeça ver a Baixa assim.» O presidente da câmara, António Costa, «só fechou o trânsito ao domingo. De resto, não se vê mais nada.» «Ele passa aí», queixa-se, mas «o [Jorge] Sampaio é que nos apertava a mão…» Dizia George Burn, humorista norte-americano: «É uma pena que todas as pessoas que sabem como é que se governa o país estejam ocupadas a conduzir táxis ou a cortar cabelo.» Ao desabafo de Moutinho junta-se o lamento do patrão, que preferia ser empregado: «Antigamente era um luxo ter um estabelecimento aqui. Agora? Agora é uma desgraça.»

A revolução da gilete
Enquanto um corrupio de gente se atropela lá fora, apressadamente, o tempo arrasta-se na Barbearia Torres. A impressão é a de que estes homens são, de alguma forma, um reflexo das muitas das construções que lhes rodeiam os dias. Edifícios que o tempo foi degradando. Outrora a transbordarem de vida, estão hoje envelhecidos, abandonados…
«Esta profissão está positivamente a braços com uma tremenda crise que a vai exterminando com uma rapidez horrífica.» Apesar de encaixar no discurso dos homens da Barbearia Torres, este alerta foi dado a 11 de Maio de 1924 por Américo da Graça, na União dos Logistas Barbeiros do Porto, durante uma conferência subordinada ao tema «O Barbeiro através dos Tempos e a Sua Decadência Económica». Nessa altura, não eram os modernos cabeleireiros que roubavam a clientela… «Há-de ser a crise mais aguda que os barbeiros têm passado através dos séculos, na transição para o provável desaparecimento para o qual os arrastará a gilete», profetizava o nortenho.
E assim foi, segundo reza a história: durante trinta anos, a profissão atravessou em Portugal o seu momento porventura mais difícil. Há séculos que os barbeiros haviam perdido as suas competências na área da medicina, da cirurgia, da medicina dentária. Na Idade Média, ao barbeiro era até entregue a responsabilidade de lavar e guarnecer uma espada com motivos patrióticos. Mas foi a lâmina de barbear que, muito mais tarde, infligiu um duro golpe. «A propaganda é medonha. Ainda há pouco, a revista ABC trazia um anúncio com os seguintes dizeres: “Defendei-vos do dragão”. O dragão era o pobre barbeiro», exclamava Américo da Graça aos profissionais da cidade do Porto.

Corte à francesa
No entanto, em 1954 chegou de Paris a novidade que iria deixar os portugueses de cabeça perdida, salvo seja: o método Hardy. Um processo que incluía estudo do rosto e cabelo, corte preparatório, lavagem, effilage (acabamento à navalha), secagem, molde, penteado e pulverização a laca. «Era o chamado corte à francesa», explica Alfredo Fidalgo Pereira, de 69 anos, durante uma pausa para cigarro frente ao número 5 da Calçada do Carmo.
Trazido de França por Ramiro Simões Moutinho, o método ganhou adeptos em Lisboa. Alberto de Carvalho Abrantes foi um deles. «Meu mestre», explica José Malveira, de 56 anos, hoje sozinho entre os galardões conquistados em concursos de penteados masculinos, ainda expostos no número 4 da Rua da Conceição. A barbearia onde trabalha resiste com dificuldade, apesar de ter sido uma das mais concorridas das décadas de 1950 e 1960, altura em que chegou a ser escola de cabeleireiros. «Se eu não estivesse aqui, a casa já tinha fechado», garante.
O futuro aprendiz seria ainda bebé de colo quando Alberto Abrantes viveu um dos episódios mais curiosos durante o ensino do método francês no nosso país. Em 1954, o então salão tornou-se também «escola», onde os barbeiros eram simultaneamente professores e alunos. Uma noite, devido à falta de modelos, Abrantes saiu à rua em busca de quem quisesse cortar o cabelo gratuitamente. «Em pleno Terreiro do Paço, descobriu um grupo de três indivíduos, todos de farta cabeleira, em amena conversa», relata em livro Mário Monteiro, antigo director da escola profissional. Depois de ultrapassada a dificuldade de explicar que lhes queria oferecer um corte à francesa, algo de que os homens nunca tinham ouvido falar, «entrava triunfalmente no seu salão com os três modelos». Consta que depressa se espalhou a notícia de que, à noite, no salão de Alberto Abrantes, se cortava o cabelo gratuitamente, «e os modelos começaram a afluir, e a tal ponto que o caso chegou ao conhecimento do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência».
Certa noite, dois fiscais bateram à porta da barbearia, dispostos «a lavrar o respectivo auto de transgressão de horário de trabalho», e encontraram a escola em plena laboração. Como decorreu a conversa, não se sabe ao certo. O que se sabe é que Alberto Abrantes e os seus colegas não só não foram multados, como ainda conseguiram que os fiscais saíssem da loja… com um corte à francesa.

A morte da Baixa
Outros tempos. Hoje, «a Baixa está a morrer lentamente», lamenta-se Augusto Pereira, de 69 anos. «Cheguei a fazer 22 barbas num dia, agora faz-se uma de vez em quando». O pouco que fazer não lhe roubou o sorriso, presente também no rosto de João Santos. Aos 72 anos, tem mais de seis décadas de trabalho nas mãos. Por ele, tempo mais do que suficiente. «Quem me dera que alguém tomasse conta disto. Hoje, os jovens têm estabelecimentos mais modernos, e nós estamos velhos de mais para renovar isto», confessa, referindo-se ao rés-do-chão do número 5 da Calçada do Carmo, onde se corta cabelo desde 1929.
«Não estou a anunciar-vos, com proféticas palavras, o vosso desaparecimento como profissionais desta arte que a sociedade muito precisa para a sua higiene, para o seu asseio e para a sua beleza; no entanto, previno-vos do momento que se aproxima, que para nós deve ser de dificuldades. Por isso, devemos defender-nos, para evitar transpormos os umbrais da história», concluía Américo da Graça, em 1924. Mais de oitenta anos depois, a luta parece estar a chegar ao fim. Pouco falta para que os barbeiros de Lisboa deponham finalmente as suas armas: tesouras e pentes, escovas e navalhas, ferramentas com que ao longo dos séculos foram esculpindo o visual dos portugueses. Um dia, dos barbeiros restarão apenas as histórias e as memórias…

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