Entre Deus e diabo, Diego escolheu a alegria. Maradona nasceu pobre e morreu rico. Ganhou jogos, campeonatos e o Mundial"86; a personalidade aditiva perdeu a maioria das lutas. Essa síntese de humanidade conquistou uma grande parte (dos povos) do mundo. Por isso, rivais e adversários deixaram de combater o imbatível e os sorrisos sobrepõe-se ao choro. Três argentinos a viver em Portugal encontram-se aqui, nestas páginas: um cozinheiro, um gestor e uma escritora. Chakall, Pablo Puey e Cristina Norton não concordam em tudo..O chef Chakall, que atualmente gere três restaurantes em Lisboa (El Bulo Social Club, Chakburger e Refeitório Senhor Abel), fala da experiência mística de quando conheceu pessoalmente Diego Armando Maradona.."O meu segundo nome é Andrés. Ele morreu num bairro que se chama San Andrés, em Tigre. Eu nasci em Tigre e ele morreu em Tigre", acaba por se aperceber o chef, adepto do River Plate, arquirrival do Boca Juniors de Diego - "e do Benfica, claro", ri-se. Na ressaca da morte de El Pibe de Oro (o menino de ouro), na quarta-feira 25 de novembro, Chakall foi trabalhar com uma camisola da seleção argentina número 10 (a de Diego no Mundial 1982) e um casaco de uma edição limitada comemorativa dos 50 anos de Maradona (em 2010, portanto), criada pela Puma, patrocinadora de ambos. "Este casaco está assinado por ele."."Tenho de confessar que eu odiava Maradona", diz o argentino nascido em 1972. "O Kempes [figura do título mundial de 1978] era o meu ídolo, porque eu sou adepto do River Plate. Mas quando vou a Nápoles, deixo de ser Boca e apaixono-me por ele. Maradona representa tudo o que é ser argentino: o carácter rebelde, inconformista, a garra." Uma versão masculina de Mafalda, de Quino (autor que morreu a 30 de setembro)? "Nunca tinha pensado nisso, mas faz sentido", assente.."Na Argentina, jogamos à bola e partimos a perna, mas jogamos até ao final. Nós odiávamos os ingleses por causa das Malvinas e da guerra em 1982. As guerras são todas estúpidas, mas aquela ainda mais, porque foi política. Mas ganhar o Mundial"86 foi o melhor de tudo. Não a mão de Deus e o pé do diabo, mas a alegria de sermos grandes", diz Chakall, entusiasmado..A escritora Cristina Norton, com dupla nacionalidade e que vive em Portugal há décadas, não segue o entusiasmo, mas percebe-o. "Ele jogava maravilhosamente, mas era muito histriónico. Gostava de ser vedeta. No meu meio, que pode ser mais literário ou artístico, também falávamos de futebol. E de El Pibe, o miúdo. Mas depois transformou-se numa figura triste. Tive pena dele, dá-me tristeza. Percebo esta loucura, ele é um ídolo, para os argentinos e não só. Eu sempre o vi como uma pessoa perdida, sobretudo a partir do momento em que vai para Nápoles [1984-1991]. El Pibe abandonado, sim. Como um barco numa tempestade à deriva, sem âncora ou sem ter sequer uma boia", diz a autora de livros como O Afinador de Pianos, O Lázaro do Porto, O Barco de Chocolate (contos infantis, Prémio Adolfo Simões Müller, 2002), A Casa do Sal e O Guardião de Livros..Adepta do River Plate, gosta de futebol, sem seguir o desporto de perto. "Sabe qual é o meu clube em Portugal? O Varzim. Sinto uma afinidade muito grande com aquela gente", ri-se. E admite a influência de Maradona no seu país de origem: "Com as vitórias, deu esperança a um povo muito triste.".Pablo Buey, diretor de operações da PSA Portugal (Peugeot e Citroën), regressou no início do ano a Lisboa, onde já tinha vivido entre 2007 e 2012. E assume que "Maradona encarnava a dicotomia argentina". "Somos de extremos. Estamos mais perto de Deus, com o Papa; e mais perto do diabo, com a ex-presidente", sorri, referindo à atual vice-presidente de Alberto Fernández (eleito presidente em 2019). Cristina Kirchner passou de primeira-dama, quando da presidência do marido Néstor (2003-2007) a presidente da Argentina, entre 2007 e 2015.."Ele era emoção. Tanto produzia declarações agressivas como disparava balas sobre a imprensa, ou fazia não sei quantos filhos em todo o mundo. Mas é, sobretudo, um fenómeno social. Vi ao vivo a despedida de Maradona na Bombonera [2001], quando ele disse la pelota no se mancha [a bola não se mancha, ou a bola não fica manchada pelos erros do homem]. Eu sou do Independiente, mas os do River, de todos os clubes, choravam juntos", recorda-se Pablo.."Nestes dias já chorei, já me ri muito. E estava com a minha mulher a lembrar-me de que a música que mais passou no nosso casamento foi La Mano de Díos, de um cantor que já morreu, Roberto, e com uma letra muito pirosa", acrescenta Pablo, nascido em Buenos Aires em 1969.."É o legado do último herói, daquele que ganhou um Mundial. Ele sai de condições socioeconómicas muito frágeis e tem sucesso, é milionário e não sabe lidar com peso da fama ou do dinheiro. Senão, seria presidente da Argentina ou da FIFA", defende o gestor. "É um símbolo da democracia", aponta, lembrando-se de que quando foi contratado pelo Barcelona em 1982, a Junta Militar que dominava o país já o tinha impedido de ir antes para o clube catalão.."Estive a ver a cerimónia Maradona na Casa Rosada [palácio presidencial]: na Argentina, os clubes pesam mais do que a seleção, mas ver os adeptos por entre uma pandemia, pobres, com as camisolas do River, do Independiente, a chorar por ele... é muito poderoso", confessa Pablo Puey.."Como todos os argentinos da minha geração, comecei a ver futebol com o Mundial"78, porque ser campeão aumentou a nossa paixão pelo jogo. Mas em 1979 há Mundial sub-20 [ganho pela Argentina capitaneada por Diego], e eu levantava-me às quatro da manhã para ver jogos fantásticos do Maradona. Ou seja, eu comecei a gostar de futebol em 1978, mas apaixonei-me em 1979. Por causa de Maradona", explica o adepto do Independiente - "um clube grande, ou que já foi grande", ironiza..Pablo Puey conheceu Maradona num torneio de ténis patrocinado pela sua empresa, a Peugeot, em Buenos Aires, ano de 2006. "O ténis é um desporto de etiqueta, tem de acabar um jogo para se poder entrar no estádio. Eu estava nas bancadas, ele entra no meio de um ponto. As pessoas começam a fazer um bocado de barulho, o ruído aumenta e o estádio todo começa a aplaudir, os dois jogadores incluídos, parando de jogar. E ele envergonhado por interromper a partida", recorda..Voltemos a Chakall. "Conheci o Maradona em 1995/96, ele estava de volta à Argentina. Eu era crítico de música num jornal. Como era de uma família de restaurantes e falo sete línguas, fazia de cicerone a muitos estrangeiros que iam atuar à Argentina. Havia esta banda sueca com duas raparigas muito bonitas, a Yaki-Da [Marie Knutsen e Linda Schönberg[. Foram a um programa de televisão à tarde. Estava lá também o Maradona. Diego fica maluco por uma das raparigas, quer conhecê-la", recorda Chakall.."Íamos levar as raparigas a um restaurante e o Guillermo Coppola, ex-agente de Maradona, liga-me: 'Dá-me o número, Maradona tem uma discoteca e quer que elas vão lá.' Ao jantar, já meio bêbedos, ligam. 'Fala Guiche [Guillermo Copolla]. Diego quer conhecer essa rapariga. Vamos ao El Cielo [discoteca que era do Maradona] e vou reservar o private.' Vinte minutos depois, liga outra vez: 'Onde estão? Entramos à uma da manhã: somos convidados de Maradona, Rabina [ex-jogador] e um secretário da presidência da Nação.' Eu falava alemão com elas, traduzia. Maradona queria ter alguma coisa com ela. Ela disse-me: 'Não quero ter nada com ele.' Eu dizia ao Maradona que estava difícil. Ele disse os nomes de todo os jogadores da seleção da Suécia. Claro, eram cinco palavras em inglês, 75 em argentino. No dia seguinte, jogava com Boca. E diz-me: 'Dou-te o meu número', liga-me para estar com ela. E qual é o número? 4101010. Bem, saímos às seis da manhã da discoteca, jogou à tarde e marcou dois golos. Eu acordei às quatro da tarde, todo vomitado", diz às gargalhadas o chef.."Maradona não tinha ideia do que era Maradona. Dizia-me: "Olha que eu sou casado. Mostrava a aliança. Pensava que não se sabia, que toda a gente conhecia a sua vida. Dois dias depois, estava no jornal. Um gajo vem ter comigo, está a ligar Maradona. "Olha, as raparigas ainda estão?"", sublinha Chakall.