Na noite de terça-feira, enquanto se aguardava uma decisão sobre o próximo presidente dos Estados Unidos, um grupo de manifestantes fez subir a tensão na Baixa de Los Angeles, onde um forte contingente policial se concentrava para suprimir a possibilidade de distúrbios. As lojas tinham encerrado mais cedo e muitas entaiparam as montras para se protegerem de motins. Mas nada de relevante aconteceu. O próximo ocupante da Casa Branca não ficou decidido naquela noite. Nem sequer nas seguintes. Naquela que é já a eleição mais bizarra da história dos Estados Unidos, a decisão sobre o morador da 1600 Pennsylvania Avenue tornou-se um reality show interminável nos canais de televisão, com direito a conferências de imprensa inflamatórias, repórteres a fazerem contas aos votos em direto e acusações infundadas de fraude. Para Jean-Luc Valentin, afro-americano que trocou Nova Iorque por Los Angeles, o desenrolar da eleição foi uma completa surpresa. "Não pensei que ia ser tão renhido. Desde que Biden anunciou que ia candidatar-se, acreditei que ele ia ganhar com esmagadora maioria, que ia receber o apoio dos eleitores negros, das mulheres, dos cristãos mais racionais", disse ao DN. "Acreditei que essa combinação seria demasiado forte para Trump suplantar, porque Biden conseguiu unir estes grupos numa força poderosa." Ainda não passavam muitas horas depois do encerramento das urnas quando se percebeu que isso não ia acontecer. "No dia da eleição, olhando para os números e falando com muitos dos meus amigos, vi que nos sentimos todos da mesma forma: não podíamos acreditar que Trump tinha tanto apelo para conseguir mais de 60 milhões de eleitores que acreditam nele", afirmou. "Sessenta milhões de americanos acreditam em ser imprudente, preconceituoso, misógino, odiar mulheres e pessoas de cor, e tentar dividir o país." Essa foi uma narrativa que se repetiu pelas zonas mais progressistas da liberal Califórnia, que deu a Joe Biden uma das vitórias mais expressivas da noite, cerca de 65% do total dos votos: como é que Trump conseguira tanto apoio? "É um comprimido amargo que temos de engolir", caracterizou Valentin, no seu sotaque nova-iorquino. "Olhamos para estes números e percebemos que isto não são apenas os seus apoiantes no sul, os True Trumpers. Isto inclui outras pessoas. Nesse grupo há negros, mulheres, hispânicos e brancos. Não conseguimos conciliar isso, que há pessoas que acreditam no ódio e na divisão." Afonso Salcedo, norte-americano que cresceu em Portugal, mostrou-se desapontado mas não surpreendido. "A base adora o Trump e liga mais àquela mania de que ele é um homem de negócios e percebe de economia e está a salvar isto tudo", disse ao DN o artista de iluminação, que vive em Los Angeles. "É um bocado surreal. Eu tinha a noção de que ia ser bastante apertado, mas queria uma vitória esmagadora do Biden para conseguirmos também o Senado." Isso não aconteceu, e a lentidão da contagem deu latitude ao presidente e aos seus apoiantes para gritarem "fraude", alegações infundadas que incendiaram ainda mais os ânimos. "Este é um bom exemplo de como processos diferentes causam um problema", disse ao DN Ângela Simões, chair do Conselho de Liderança Luso-Americano. "Se houvesse uma forma de padronizar o processo em todos os estados, isso iria eliminar muitos dos problemas que estamos a ver agora." Eleitora independente, Simões falou das divisões fratricidas que estão a acontecer por causa do tribalismo político. "Encorajo as pessoas a lembrarem-se de que, independentemente de quem esteja no poder, só lá estão por um curto período de tempo e nós interagimos com os nossos amigos e família a vida toda", disse. "Arruinar relações pessoais por causa de diferenças políticas é infeliz", considerou. "Só posso esperar que as pessoas sejam maduras e espertas o suficiente para tirar o melhor partido da situação que nos for dada, e que não passem os próximos quatro anos a fazer birra porque as coisas não correram como queriam." O empresário Ron Barnoy, que votou em Biden, contrariou a ideia de que a demora na contagem dos votos levou os eleitores a colocar em causa a legitimidade das eleições. "Para a maioria das pessoas não", afirmou. "Talvez metade dos republicanos." E, é claro, "os Trumpers hard core", que foram para as redes sociais e para os sítios de contagem de votos gritar "fraude". Margaret Peek, que tem um mestrado em assistência social e vive no norte da Califórnia, expressou uma visão pouco otimista da situação, mas não pela demora. "Não me parece que o problema seja o tempo que leva a processar os resultados da eleição", disse. "O dano duradouro e o verdadeiro problema é que temos evidência de como o racismo, classismo, homofobia e sexismo viveram entre nós escondidos por um fino véu de civilidade", descreveu. "O teatro acabou graças a esta eleição." Vivendo num condado com pequenas aldeias numa zona rural, Peek está rodeada de uma Califórnia que aparece menos vezes do que a restante. Embora o estado seja agressivamente "azul" na legislatura estadual, nos representantes ao Congresso e na eleição presidencial há ainda regiões muito conservadoras. "O impacto desta eleição criou uma atmosfera que amplifica o que tem acontecido nos últimos quatro anos: divisão", explicou. Muitas estradas do condado foram bloqueadas por paradas de apoiantes do presidente nos últimos meses. As pontes nas autoestradas foram tomadas por parafernália de apoio a Trump. Lotes vazios viram-se ocupados por barracas de venda de merchandise de apoio ao presidente. "Para aqueles que não apoiam Trump, isto criou um sentimento crescente de opressão", disse Peek. "Nunca vi uma demonstração de algo tão politicamente pessoal e sempre feito pelo mesmo segmento demográfico da população: pessoas brancas empunhando a bandeira americana", disse. "A mensagem subliminar, tal como discutido por muitas pessoas no nosso condado, é que ser americano é ser branco e Trump é para os americanos brancos.".Este é um cenário que Sandra Lee Carapinha, norte-americana que viveu em Portugal, não vê em Santa Monica. "Para ser honesta, não conheço muitas pessoas que votam nos republicanos aqui em Los Angeles", disse ao DN, mencionando que conhece quem tenha mudado de Trump para Biden nesta eleição. Manteve-se sempre otimista, sublinhando que Joe Biden rapidamente se tornou o candidato com mais votos na história do país. Disse não ter dúvidas de que o mundo todo, colado aos ecrãs das televisões, torceu por ele. "Donald Trump não fortaleceu a relação com a Europa e acho que há um processo de cicatrização que é preciso ser feito." Para os próximos quatro anos, haverá muito a fazer. "A verdade é que as políticas do Joe Biden são muito diferentes e ele tem ali um trabalho para alterar muita coisa que foi feita. Vai ter uns primeiros cem dias muito ocupados", considerou, apontando para a prioridade de controlar o coronavírus e assim recuperar a economia. "Outros casos são a situação da imigração, das crianças que não sabem onde estão os pais, há muitas questões sociais, o Acordo de Paris", apontou. Para lá das políticas concretas, há as feridas. "A fratura que começou há quatro anos, quando as pessoas começaram a identificar-se com Trump, foi profundamente evidenciada nesta eleição", disse Margaret Peek. Como assistente social, sempre soube que há muitas pessoas que estão menos protegidas, privadas de direitos. "Mas o que não sabíamos é o quão abertamente este país aceita isso." Salcedo arriscou uma explicação. "A base do Trump é muito vocal, muito conservadora, muito religiosa, há bastante racismo e essas coisas todas ajudam a continuar a seguir aquele culto." Ainda assim, disse, "é um absurdo que com a pandemia e com a economia destruída as pessoas não liguem a isso." Para Jean-Luc Valentin, a ansiedade está na perspetiva de manobras legais. "Trump vai usar tudo o que puder para virar tudo ao contrário", disse. "Vai ter um asterisco ao lado do seu nome como o único presidente que teve de ser arrastado da Casa Branca."
Na noite de terça-feira, enquanto se aguardava uma decisão sobre o próximo presidente dos Estados Unidos, um grupo de manifestantes fez subir a tensão na Baixa de Los Angeles, onde um forte contingente policial se concentrava para suprimir a possibilidade de distúrbios. As lojas tinham encerrado mais cedo e muitas entaiparam as montras para se protegerem de motins. Mas nada de relevante aconteceu. O próximo ocupante da Casa Branca não ficou decidido naquela noite. Nem sequer nas seguintes. Naquela que é já a eleição mais bizarra da história dos Estados Unidos, a decisão sobre o morador da 1600 Pennsylvania Avenue tornou-se um reality show interminável nos canais de televisão, com direito a conferências de imprensa inflamatórias, repórteres a fazerem contas aos votos em direto e acusações infundadas de fraude. Para Jean-Luc Valentin, afro-americano que trocou Nova Iorque por Los Angeles, o desenrolar da eleição foi uma completa surpresa. "Não pensei que ia ser tão renhido. Desde que Biden anunciou que ia candidatar-se, acreditei que ele ia ganhar com esmagadora maioria, que ia receber o apoio dos eleitores negros, das mulheres, dos cristãos mais racionais", disse ao DN. "Acreditei que essa combinação seria demasiado forte para Trump suplantar, porque Biden conseguiu unir estes grupos numa força poderosa." Ainda não passavam muitas horas depois do encerramento das urnas quando se percebeu que isso não ia acontecer. "No dia da eleição, olhando para os números e falando com muitos dos meus amigos, vi que nos sentimos todos da mesma forma: não podíamos acreditar que Trump tinha tanto apelo para conseguir mais de 60 milhões de eleitores que acreditam nele", afirmou. "Sessenta milhões de americanos acreditam em ser imprudente, preconceituoso, misógino, odiar mulheres e pessoas de cor, e tentar dividir o país." Essa foi uma narrativa que se repetiu pelas zonas mais progressistas da liberal Califórnia, que deu a Joe Biden uma das vitórias mais expressivas da noite, cerca de 65% do total dos votos: como é que Trump conseguira tanto apoio? "É um comprimido amargo que temos de engolir", caracterizou Valentin, no seu sotaque nova-iorquino. "Olhamos para estes números e percebemos que isto não são apenas os seus apoiantes no sul, os True Trumpers. Isto inclui outras pessoas. Nesse grupo há negros, mulheres, hispânicos e brancos. Não conseguimos conciliar isso, que há pessoas que acreditam no ódio e na divisão." Afonso Salcedo, norte-americano que cresceu em Portugal, mostrou-se desapontado mas não surpreendido. "A base adora o Trump e liga mais àquela mania de que ele é um homem de negócios e percebe de economia e está a salvar isto tudo", disse ao DN o artista de iluminação, que vive em Los Angeles. "É um bocado surreal. Eu tinha a noção de que ia ser bastante apertado, mas queria uma vitória esmagadora do Biden para conseguirmos também o Senado." Isso não aconteceu, e a lentidão da contagem deu latitude ao presidente e aos seus apoiantes para gritarem "fraude", alegações infundadas que incendiaram ainda mais os ânimos. "Este é um bom exemplo de como processos diferentes causam um problema", disse ao DN Ângela Simões, chair do Conselho de Liderança Luso-Americano. "Se houvesse uma forma de padronizar o processo em todos os estados, isso iria eliminar muitos dos problemas que estamos a ver agora." Eleitora independente, Simões falou das divisões fratricidas que estão a acontecer por causa do tribalismo político. "Encorajo as pessoas a lembrarem-se de que, independentemente de quem esteja no poder, só lá estão por um curto período de tempo e nós interagimos com os nossos amigos e família a vida toda", disse. "Arruinar relações pessoais por causa de diferenças políticas é infeliz", considerou. "Só posso esperar que as pessoas sejam maduras e espertas o suficiente para tirar o melhor partido da situação que nos for dada, e que não passem os próximos quatro anos a fazer birra porque as coisas não correram como queriam." O empresário Ron Barnoy, que votou em Biden, contrariou a ideia de que a demora na contagem dos votos levou os eleitores a colocar em causa a legitimidade das eleições. "Para a maioria das pessoas não", afirmou. "Talvez metade dos republicanos." E, é claro, "os Trumpers hard core", que foram para as redes sociais e para os sítios de contagem de votos gritar "fraude". Margaret Peek, que tem um mestrado em assistência social e vive no norte da Califórnia, expressou uma visão pouco otimista da situação, mas não pela demora. "Não me parece que o problema seja o tempo que leva a processar os resultados da eleição", disse. "O dano duradouro e o verdadeiro problema é que temos evidência de como o racismo, classismo, homofobia e sexismo viveram entre nós escondidos por um fino véu de civilidade", descreveu. "O teatro acabou graças a esta eleição." Vivendo num condado com pequenas aldeias numa zona rural, Peek está rodeada de uma Califórnia que aparece menos vezes do que a restante. Embora o estado seja agressivamente "azul" na legislatura estadual, nos representantes ao Congresso e na eleição presidencial há ainda regiões muito conservadoras. "O impacto desta eleição criou uma atmosfera que amplifica o que tem acontecido nos últimos quatro anos: divisão", explicou. Muitas estradas do condado foram bloqueadas por paradas de apoiantes do presidente nos últimos meses. As pontes nas autoestradas foram tomadas por parafernália de apoio a Trump. Lotes vazios viram-se ocupados por barracas de venda de merchandise de apoio ao presidente. "Para aqueles que não apoiam Trump, isto criou um sentimento crescente de opressão", disse Peek. "Nunca vi uma demonstração de algo tão politicamente pessoal e sempre feito pelo mesmo segmento demográfico da população: pessoas brancas empunhando a bandeira americana", disse. "A mensagem subliminar, tal como discutido por muitas pessoas no nosso condado, é que ser americano é ser branco e Trump é para os americanos brancos.".Este é um cenário que Sandra Lee Carapinha, norte-americana que viveu em Portugal, não vê em Santa Monica. "Para ser honesta, não conheço muitas pessoas que votam nos republicanos aqui em Los Angeles", disse ao DN, mencionando que conhece quem tenha mudado de Trump para Biden nesta eleição. Manteve-se sempre otimista, sublinhando que Joe Biden rapidamente se tornou o candidato com mais votos na história do país. Disse não ter dúvidas de que o mundo todo, colado aos ecrãs das televisões, torceu por ele. "Donald Trump não fortaleceu a relação com a Europa e acho que há um processo de cicatrização que é preciso ser feito." Para os próximos quatro anos, haverá muito a fazer. "A verdade é que as políticas do Joe Biden são muito diferentes e ele tem ali um trabalho para alterar muita coisa que foi feita. Vai ter uns primeiros cem dias muito ocupados", considerou, apontando para a prioridade de controlar o coronavírus e assim recuperar a economia. "Outros casos são a situação da imigração, das crianças que não sabem onde estão os pais, há muitas questões sociais, o Acordo de Paris", apontou. Para lá das políticas concretas, há as feridas. "A fratura que começou há quatro anos, quando as pessoas começaram a identificar-se com Trump, foi profundamente evidenciada nesta eleição", disse Margaret Peek. Como assistente social, sempre soube que há muitas pessoas que estão menos protegidas, privadas de direitos. "Mas o que não sabíamos é o quão abertamente este país aceita isso." Salcedo arriscou uma explicação. "A base do Trump é muito vocal, muito conservadora, muito religiosa, há bastante racismo e essas coisas todas ajudam a continuar a seguir aquele culto." Ainda assim, disse, "é um absurdo que com a pandemia e com a economia destruída as pessoas não liguem a isso." Para Jean-Luc Valentin, a ansiedade está na perspetiva de manobras legais. "Trump vai usar tudo o que puder para virar tudo ao contrário", disse. "Vai ter um asterisco ao lado do seu nome como o único presidente que teve de ser arrastado da Casa Branca."