Entre a comodidade e a queixa
Alguns amigos já estão de férias. Hoje almocei com um deles, que gere um restaurante. Está satisfeito porque a faturação aumentou cerca de 10%. Cerca de 10% é muito. Os custos fixos são os mesmos haja ou não procura. Isto significa que o benefício cresce exponencialmente à medida que os clientes aumentam. Assim, o custo marginal de ter o negócio aberto diminui e a rentabilidade aumenta. Decidiu ir um mês de férias, que também é muito tempo, mas está preocupado com o regresso. Espanha tem eleições no final do ano e o resultado é incerto.
Nesta semana jantei também com um ex-ministro do PP e a impressão dele é que a direita ganhará com uma certa folga, mas que não conseguirá formar governo. Nem sequer com o apoio do Ciudadanos, que é um novo partido pouco definido mas nada radical. Tal como há uns anos, há um afã em Espanha para desalojar o PP do poder. As dificuldades da direita para estabelecer um pacto com outra formação política parecem insolúveis. Os casos de corrupção em que está imersa explicam estes problemas de afeto. Ainda que não em exclusivo. A esquerda convencional, o Partido Socialista, está igualmente implicada, ou mais ainda, em casos de latrocínios diversos, mas a permanência no governo requer uma limpeza extra que não parece ser exigida à oposição.
Tudo aponta para que uma amálgama de partidos de esquerda, liderados pelos socialistas, conseguirá formar governo em Espanha no próximo ano. Talvez o mesmo vá acontecer em Portugal. As consequências deste resultado serão dramáticas porque as formações dispostas a apoiar a nova equipa não acreditam na economia de mercado, são partidárias da despesa pública e mantêm um tom de desafio perante as políticas recomendadas pela União Europeia. São "gregas" no pior sentido da palavra. Estão convencidas de que se deve, e se pode, alterar a ordem institucional e dar um murro na mesa para pôr em marcha uma política alternativa.
Que isto aconteça em Espanha não é nenhum mistério. Uma sondagem recente do Pew Research Center que avalia o sentimento em relação ao mercado livre revela que, no meu país, 51% dos inquiridos lhe é hostil, um número semelhante aos de Estados como o Japão ou a Grécia. Pelo seu lado, a Coreia do Sul, a Alemanha e os Estados Unidos destacam-se como os mais firmes defensores do sistema capitalista entre os países mais desenvolvidos, e ao mesmo tempo é de salientar que entre as nações em vias de desenvolvimento o apoio a este modelo é igualmente franco e notório. São uns resultados realmente surpreendentes. Em Espanha desfrutamos da economia de mercado desde há décadas, tivemos uma mudança espetacular nos níveis de vida desde o fim da ditadura mas, ao mesmo tempo, somos um dos países mais anticapitalistas do mundo. Um mistério. Ou não? Talvez a violenta recessão de que padecemos possa ser a causa da animosidade. Mas eu não aponto para esta teoria. Creio que a animosidade tem um carácter estrutural e que assim é devido ao enorme dano moral causado pelo Estado do bem-estar. Já não é só o facto de se ter demonstrado irrefutavelmente que o Estado-Providência é insustentável do ponto de vista financeiro, mas também as conclusões que estes inquéritos à opinião pública refletem de que aquele destruiu igualmente a cadeia de incentivos que põe as pessoas em marcha para, na procura do seu próprio interesse, proporcionarem ao mesmo tempo o melhor resultado possível para a comunidade. A única explicação possível para que, onde se vive melhor, as pessoas estejam mais descontentes - enquanto nos países mais pobres se aprecia os avanços imparáveis na qualidade de vida que o sistema capitalista está a proporcionar, o objetivo é o abandono da pobreza e a desigualdade é considerada uma questão menor e acidental - é que no mundo desenvolvido construímos um modelo que teve como resultado a cultura da queixa, a droga da comodidade.
Como as pessoas estão habituadas a depender do Estado desde que nascem até que morrem, o aflorar das capacidades inatas para empreender, inovar e criar riqueza torna-se uma tarefa hercúlea. Por isso perdemos competitividade e entrámos num estado de ansiedade perante os efeitos da globalização, o impulso das novas tecnologias e os restantes acontecimentos novos que tanto bem acarretam para os países incipientes e que, aqui, acabámos por interiorizar como uma ameaça. O sistema educativo herdeiro desta cultura da assistência exerceu uma influência letal sobre a mentalidade dos nossos filhos. Quando fiz o serviço militar obrigatório no meu país, por certo uma instituição nada liberal, e passávamos pelas aflições próprias da experiência, a expressão "faz-te à vida" era muito comum. Ninguém nos resolvia os problemas ocasionais que surgiam na convivência diária. Cada qual tinha de ter o domínio e a responsabilidade sobre o seu destino. Isto desapareceu por completo da cultura moderna. Os nossos jovens sentem-se credores de direitos inventados e ridículos e, se não os veem satisfeitos, consideram-se vítimas do sistema, perdedores de umas regras do jogo que consideram injustas sem motivo. E há que mudar!
Nestas circunstâncias parece normal que estejam dispostos a dar o seu voto aos novos vendedores de banha da cobra em que se transformaram os socialistas e os seus novos companheiros de viagem, os partidos populistas. Estes reafirmam-nos na sua condição de descrentes de um modelo político e social que supostamente os excluiu das oportunidades que lhes eram devidas. Convencem-nos de que são os grandes prejudicados e ofendidos pela casta dominante. E se, além do mais, temos a enorme desvantagem de contar com um Papa excêntrico que relaciona os malogrados com aquilo que descreveu como a "cultura do descarte", a possibilidade de combater este grupo de forças tão equivocado como eficaz exige uma clareza de ideias e uma determinação colossais, que estão em falta nas formações conservadoras e liberais assim como nos partidos de direita.
As consequências de uma má eleição política serão terríveis para o meu país, penso que também para Portugal e, desde logo, para o meu amigo, o que gere o restaurante. Ainda que os aprendizes de feiticeiros e os que os secundam o ignorem, o resultado será uma redução brutal das expectativas nas quais se baseia o avanço das sociedades, uma fuga do investimento, uma retração do consumo e a chegada de tempos muito maus para a taberna Casa Paco, onde se come muito bem e se mantêm conversas muito agradáveis e satisfatórias. Como aquelas que tanto recordo aqui em Lisboa no Farta Brutos ou no Galito.