Entender os circuitos da visão para tratar doenças degenerativas
Para quando o desenvolvimento de tratamentos capazes de corrigir ligações neuronais, parando por completo ou até mesmo revertendo doenças degenerativas que causam a cegueira total ou parcial? "Ainda não há forma de o fazer mas é realista dizer que isso vai acontecer no espaço de uns 10 anos".
O otimismo de John Flanagan, professor e investigador da Universidade de Waterloo, especialista em glaucoma, é subscrito pelas colegas Carol Ann Mason, da Universidade de Columbia e Christine Holt, de Cambridge, Reino Unido. Com Carla Shatz, da Universidade de Cambridge, estes cientistas são os vencedores do prémio Champalimaud 2016, dividindo entre si um milhão de euros.
E as descobertas que lhes valeram esta distinção são as mesmas que os levam a acreditar no desenvolvimento de terapias que, há pouco mais de duas décadas, pareceriam saídas do domínio da ficção científica.
Com percursos distintos, Carol Ann mais focada "na"regulação do RNA, que faz a célula nascer num certo momento, que a faz desenvolver-se com um certo perfil" , John e Christine descobrindo por métodos diferentes a enorme complexidade dos axónios, partes dos neurónios que transportam os impulsos elétricos da célula a outras partes do corpo, estes cientistas contribuíram de forma decisiva para que o conhecimento do sistema visual passasse da observação em laboratório de fenómenos sobre os quais pouco se sabia para um conhecimento detalhado que, a curto prazo, poderá dar origem a terapias capazes de mudar vidas.
"Penso que não tínhamos noção de quanto havia para descobrir antes do período entre 1995 e 2000", confessa Carol Ann Mason, a mais velha do grupo de cientistas. "Antes disso, basicamente fazíamos história natural, a antropologia de como o sistema nervoso se desenvolveu. Tínhamos microscópios e câmaras de vídeo mas não sabíamos quais eram os fatores, as proteínas principalmente, que eram usadas para permitir que o cone de crescimento se movesse nesta ou naquela direção".
John Flanagan compara os axónios a "fios" que transportam os impulsos elétricos. Fios que "têm de encontrar o seu caminho até ao destino correto, o que acontece numa fase inicial do processo. Portanto, há sinais do axónio que lhe dizem onde ir". No início da carreira de todos estes cientistas, "ninguém sabia" o que eram estes sinais. E decifrá-lo tem sido boa parte da tarefa de John e Christine.
Anteriormente, lembra Christine as pessoas pensavam que os axónios descobriam os seus alvos "numa espécie de tentativa e erro". Entretanto, "nos últimos anos deu-se uma gigantesca revolução molecular que nos ajudou muito a perceber que moléculas estão envolvidas".
"Reprogramar" para curar
As informações envolvidas no processo, que vão muito além de simplesmente indicaro "o caminho" às ligações neuronais, têm surpreendido os próprios investigadores. "Num estudo que publicámos recentemente, mostrámos que existem milhares destes marcadores de mensagem apenas num pequeno axónio em crescimento", acrescenta.
É decifrando estas mensagens que os cientistas podem esperar, no futuro, inverter determinadas doenças neurodegeneratrivas.
"Agora que percebemos melhor a base molecular, podemos usar esse conhecimento para conseguir que as ligações voltem a crescer e se regenerem. Muitos dos sinais foram identificados", explica John Flanagan.
O número de axónios é o mesmo ao longo da vida e encontrar formas de os preservar é algo que os cientistas já perceberam ser importante. Regenerá-los será um desafio diferente. Flanagan lembra que existem "inibidores", presentes naturalmente no sistema nervoso, que impedem que este se desenvolva indefinidamente, "de forma a fixar as ligações na ssuas posições". E será necessário "interferir nesse mecanismo, eliminando o efeito inibidor", para que o axónio volte a crescer livremente.
Há cerca de sete anos, foi identificado "um dos mecanismos em que atua um dos inibidores, ou a principal classe de moléculas inibidoras do axónio. E percebemos também como o axónio recebe o sinal e qual é o recetor para o sinal".
Carol Ann vê outras aplicações do conhecimento alcançado, por exemplo o desenvolvimento de novas células retinais a partir de células estaminais. Mas admite que este é um objetivo que implica preencher ainda algumas lacunas de conhecimento.
Encontrar ingredientes em falta
Se estivéssemos a falar de culinária, seriam necessários ainda alguns ingredientes para se chegar à receita perfeita: "Sabemos a receita para neurónios motores, na verdade, mas não para gangliões retinais [um tipo de neurónio localizado no interior da retina , perto da superfície do olho). Mas para se conhecer essa receita temos de estudar o desenvolvimento básico", explica. "Há peças em falta no nosso conhecimento, nomeadamente sobre o nascimento inicial da célula nervosa e o que o regula".
Um conhecimento em pormenor que o prémio Champalimaud poderá ajudar a alcançar. Christine admite que a verba atribuída ao seu laboratório poderá "ajudar, por exemplo, a montar microscópios de alta resolução", que permitirão "conseguirmos ver coisas que não víamos". Carol e John admitem aplicar parte da verba na investigação para fins terapêuticas uma área na qual, dizem, o processo de financiamento é mais complexo nos Estados Unidos.