Ensino e avaliação
Uma memória dos tempos de infância: "A mãe, que era a favor das avaliações, entendeu que como preparação para o exame de admissão ao liceu eu teria de fazer o exame de instrução primária"
Fui para a escola aos 4 anos. Tinha aberto na altura um colégio lá para os lados de S. Domingos de Benfica com todos os tiques da moderna pedagogia, onde os meninos aprendiam também inglês. Lembro-me disso porque a respectiva professora me deu uma bofetada por ter desenhado no quadro uma lua e, quando perguntou como se chamava aquilo em inglês, eu respondi "banana". A recordação desse tempo não é amável: sujava regularmente as calças por uma incontinência nervosa. Aprendi a ler sem saber como, o que me distinguiu dos meus irmãos, que foram todos ensinados pela Mãe. A Mãe quando não cozia, lia, mas não tinha ido além da 4.ª classe, dizia ela, por ser "mandriona".
A passagem pelo tal colégio foi fugaz e fiz a escola primária no Externato D. João da Câmara, mais conhecido como o "Colégio do Sr. André". O colégio estava instalado numa pequena moradia na Avenida Gomes Pereira, em frente ao que era então a sede do Sport Lisboa e Benfica. Nela viviam o Sr. André, a Sra. D. Adelaide (a "Senhora") e a mãe da "Senhora". D. Adelaide, segundo meu Pai, fora uma beldade em rapariga, embora a face sardenta estivesse marcada pelas "bexigas". O Sr. André era baixo, musculado e careca, ensinava de manhã numa escola pública lá para a Venda Nova, e só aparecia depois de almoço para o terror de todos, porque tinha a mão pesada e distribuía com surpreendente liberalidade bofetões e puxões de orelhas. Chegava, sentava-se à secretária, dormitava, arrancava com movimentos bruscos os pêlos negros, enormes, que lhe saíam das narinas, e começava por dizer "ora hoje como é Domingo", afirmação corrigida em coro pela classe. Tudo isto se passava em duas salas de aula minúsculas, crucifixo, mapas de Portugal, do mundo e do corpo humano, na parede. De manhã tínhamos outros professores e a "Senhora" ajeitava-se com a 1.ª e a 2.ª classe, embora me pareça que não tinha habilitações para tal. Na 4.ª classe tive o primeiro mestre que me marcou, e o primeiro que, diligentemente, me corrigiu a escrita.
Ia a pé para a escola. Atravessava a Estrada de Benfica e passava a capelista, a funerária, um restaurante chamado apenas Casa de Pasto - nome que me intrigava -, e a barbearia que fazia a curva para a Avenida Gomes Pereira. Na esquina havia a loja onde comprávamos os "bonecos da bola", que embrulhavam rebuçados transparentes de um sabor levemente anisado. A avenida era cruzada por um ribeiro, a que chamávamos o "caneiro", que no Inverno se enchia numa torrente suja de origem obscura.
O colégio era frequentado pelos filhos da modesta burguesia de Benfica, mas também pelo filho do barbeiro, que era de uma inteligência brilhante e veio a desempenhar cargos importantes numa grande multinacional. No princípio da semana, no intervalo do almoço, sentávamo-nos à sua volta e ele contava-nos o filme que vira no cinema do Benfica durante fim-de-semana. Imitava o cowboy, o xerife e os índios, com uma tal mestria e tal vivacidade que aqueles eram momentos mágicos, que dispensavam totalmente o celulóide. Concluída a narrativa, voltávamos para a sala, não sem antes darmos a volta no jardim batendo bem com as botas para a soltar o pó, já que a "Senhora" não queria que lhe sujassem o chão encerado como um espelho. No colégio também passou por pouco tempo o filho da dona do "lugar" da fruta, que depois fez carreira no rock. Um dia apareceu na escola com um molho de fotografias "indecentes", demonstrando detalhes anatómicos e proezas fisiológicas que nos estarreceram. Também me ensinou uma lição para a vida. Eu possuía um canivete e ele um molho de "bonecos da bola". Ele sugeriu que trocássemos os nossos haveres. Recebi os bonecos e dei-lhe o canivete, uma troca pouco inteligente. A seguir propôs que jogássemos ao "virinhas", que era um jogo em que cada um colocava um boneco virado ao contrário e com uma pancada seca, com a mão em concha, tentávamos virá-los. Pediu-me emprestado um boneco, começámos a jogar e ele ganhou o maço todo. Aprendi então a desconfiar dos profissionais de qualquer vício.
Alguém guardou as provas que fiz na 3.ª classe em Dezembro de 1952: ditado (16 valores) por faltar uma preposição; redacção ("O cão é um ser dotado de inteligência"), 13 valores; caligrafia ("por causa dos lobos que havia por aqueles sítios, levava consigo o seu cão de guarda"), 12 valores, e aritmética ("gasto diariamente 0,125 do meu dinheiro. Enquantos [sic] dias gastarei todo o dinheiro?"), 18 valores apesar de as respostas estarem todas certas.
É claro que hoje em dia aquele colégio não teria qualquer possibilidade de existir, mas a verdade é que os seus alunos, que, no final, se dividiam em dois grupos - os que iam para o liceu e os que partiam para as escolas comerciais e industriais -, acabavam por ter excelentes resultados nos exames.
A Mãe, que era a favor das avaliações, entendeu que como preparação para o exame de admissão ao liceu eu teria de fazer o exame de instrução primária. As tias assistiram, fazendo tricot, sentadas nas carteiras. Não esqueço a pergunta cuja resposta falhei: "Porque é que uma galinha quando é atropelada oferece alguma resistência?" Eu duvidei da resistência e achei a pergunta muito estúpida. A resposta certa era: "Porque é vertebrada e tem esqueleto."
No meio dos meus papéis encontrei um folheto de apresentação do "programa cinematográfico" da Esplanada do Sport Lisboa e Benfica, onde a escola publicitava os resultados dos exames oficiais da 3.ª e 4.ª classes realizados em Julho de 1954.
O anúncio descreve orgulhosamente: "100% - 28 alunos propostos a exame e 28 aprovações - 100%."
E concluía: "N.B. - Não matricule o seu filho numa escola ao acaso."
No exame de admissão ao liceu tive Muito Bom em tudo excepto desenho. Na redacção de português lembro-me de ter escrito esta frase retumbante: "Eis que tropeça e cai desamparadamente no solo!", para descrever um acidente de uma velhinha, ajudada depois por um rapaz de bom coração. Os avaliadores tiveram igualmente bom coração e deram-me Muito Bom. Tive "suficiente" na prova de desenho, que constava do desenho de uma jarra, com o necessário sombreado, e não consegui respeitar a simetria das suas ancas largas. O avô paterno obrigava-nos a levar para as provas a sua caneta Parker 51, com um biquinho quase invisível. A nossa preocupação era dupla: responder às perguntas e não estragar a caneta. Na prova oral, a professora começou por aludir à minha face sardenta, dizendo para minha vergonha: "Pareces mesmo um ovinho de perdiz!"
E assim entrei no Liceu Camões, cumprindo a tradição familiar, e onde recebi a segunda demão ...