"Aqui não olharam para mim como o cineasta rock star!"

E se repente voltasse a ser o grande Kusturica de "O Tempo dos Ciganos" e "Underground"? Aconteceu no festival, onde o cineasta apresentou o último trabalho e foi alvo de uma retrospetiva
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"Escolhi vir ao LEFFEST e recusei todos os outros festivais. Isto mostra o que penso do público português... Há 15 anos que cá venho e gosto de conversar com os portugueses. Temos uma ligação emocional e intelectual", começava por nos dizer Emir Kusturica na manhã de ontem num hotel junto ao mar, no Estoril. Na noite anterior garante que amou a sessão de perguntas e respostas de On The Milky Road, o seu mais recente filme exibido fora-de-competição. Uma afinidade grande com um país onde os seus filmes já fizeram muito público e onde os seus concertos da sua banda acontecem quase todos os anos.

Sobre a retrospetiva a que o público português assistiu da sua obra, tem algumas resistências: "sou um homem sistemático sem um plano. Estas retrospetivas são sempre estranhas para mim, sobretudo porque ainda estou vivo. Na minha cabeça ainda não fiz uma retrospetiva da minha obra, não sei ainda o que é o meu cinema. A única coisa que a palavra retrospetiva me sugere é que estou mais velho, mais maduro...Mas a vida de alguém é determinada pela morte. Na Sérvia dizem algo como, o importante é quando se vê os dentes do lobo morto".

Mas Kusturica está vivo e vivo como nunca - é como se o seu cinema tivesse renascido como On The Milky Road, o seu melhor filme em muitos anos, um renascimento em forma de fábula, em que o seu realismo mágico deixou de ser bafiento e ganhou animalidade e fulgor. Em Portugal diz que faz sentido apresentar On The Milky Road, rodado em três verões com uma Monica Bellucci em figura de musa impossível: "foi aqui em Portugal que surgiram políticos que tentaram salvar o meu território da guerra, neste caso o diplomata José Cutileiro, que com o seu plano tinha acordo com o Presidente da Bósnia e o embaixador norte-americano em Belgrado, mas depois a Bósnia recusou à última da hora". O cineasta sérvio confessa que os seus últimos filmes são resultado de uma obsessão: a maneira como o seu país foi destruído.

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"O que gostei ontem nas perguntas dos portugueses é que foram autênticas. Não olharam para mim como o cineasta rock star! Fizeram questões que fizeram sentido, foi mesmo muito bom: não levei com aquela cena do sou muito teu fã... Reagiram filosoficamente ao filme. Houve uma mulher que me questionou se a quantidade de animais que coloco no filme implica que estou a falar de uma ideia de melhor unidade entre as espécies. E essa é precisamente a definição do meu cinema, em que cada vez mais vemos a interferência dos animais com a raça humana. Essa espetadora deu-me uma boa ideia de conceito para explicar o meu cinema".

Quanto à questão de Monica Bellucci, porquê ela, Kusturica diz o óbvio: a sua interpretação está no balanço do próprio gesto do realismo mágico do seu cinema. "Sim, é uma Monica Bellucci que resulta da minha mise-en-scéne. Estava num território bastante diferente daquele que costuma ser o cinema que frequenta. A Monica fez literalmente parte do filme e do meu conceito. Veja-se a forma como ela se move...Seja o que fizesse, era um corpo de cinema. Por isso, está diferente! Usa o seu charme não para seduzir mas para impressionar com a sua vasta escala de interpretação".

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Quem também aderir à romântica insanidade desta estrada leiteira (o filme chega a Portugal em 2017) vai ficar espantado com a qualidade de um ator não tão improvável, o Emir, pois claro. O cineasta é o protagonista do filme mas assegura que nunca mais quer ser a estrela do seu próprio filme: "dá muito trabalho! É muito difícil estar sempre nesse modo de transcendência: passar de um lugar para outro. É como se estivesse num palco e, ao mesmo tempo, na plateia a ver o espetáculo. Neste meu tipo de cinema percebi que é quase impossível fazer o que eu faço. Chaplin fazia isso muito bem mas era um realizador muito mais organizado.

Depois de Lisboa, prioridade Emir é o seu festival, o já mítico Kustendorf Film and Music Festival, a ter lugar nas montanhas da sua terra já em janeiro. Um festival que o próprio define como "anti-red carpet", onde se misturam jovens cineastas, estrelas de Hollywood e músicos rock: "o festival continua de boa saúde. É um festival único - estamos todos juntos e num só local. Não é como aqui que estamos num hotel no Estoril e depois somos transportados para o cinema. É o centro de refugiados para todos os que gostam de cultura".

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