Em que dedo anda o anel que me roubaram?
"Poderia até ser eu própria mas sem o dom da admiração quer dizer - alguém completamente diferente"
Esta é a estrofe final de um poema de Wislawa Szymborska, num pequeno livrinho ("Instante", Relógio d"Água) acabado de publicar e que veio da livraria para a minha casa e desatei logo a ler. Desculpem, isto pode parecer uma coisa muito a armar a intelectual, mas não haveria escritora mais afastada dessa ideia de ah e tal uma coisa indecifrável. Ela escreve sobre as pequenas coisas e maravilha-me sempre, porque dentro da escrita dela descubro novas perguntas, dúvidas, admirações. E mesmo quando fala de Platão, no poema "Platão ou o porquê", faz dele uma pessoa com quem parece estar a conversar e ficavam ali os dois e eu quietinha a ouvi-los.
Uma vez vi um documentário sobre ela na televisão e agora aparece-me na cabeça um parêntesis: (Há pessoas que veem documentários e depois escrevem sobre eles e mais valia ficarem a ruminar lá para elas, e acho que sabem do que estou a falar, mas se não sabem eu digo: José António Saraiva e a crónica sobre mudança de sexo. Uma pessoa fica com vergonha alheia. Fim de parêntesis e não se fala mais nisso, estamos à mesa).
Mas eu não queria trazer aqui a pequenez de espírito, era mesmo sobre Wislawa e a poesia dela e recordar o documentário, ela a comprar souvenirs delirantes nos lugares por onde anda e sem saber bem em que gaveta estarão a medalha e o diploma do Nobel.
Portanto, voltando ao livro que trouxe para casa e desatei a ler, proponho um poema chamado "Lista", uma coisa alusiva à época em que há quem faça listas de decisões. Eu não faço e da passagem do ano gosto é do fogo-de-artifício.
A lista de Wislawa é outra coisa: "Preparei uma lista de perguntas / cujas respostas já não chegarei a saber /ou por ser demasiado cedo para elas / ou não conseguir entendê-las" E vai de questões como "Quando cessarão as guerras / e o que as substituirá" ou "No anelar de quem / andará o meu anel de estimação / furtado ou perdido."
Acontece que por duas vezes me assaltaram casas onde vivi e roubaram-me anéis. E outras coisas. De estimação algumas delas. Durante uns tempos espreitei montras onde havia anéis para ver se os encontrava. Manobra inútil, evidentemente, e posso ir mais longe e confessar que ainda hoje o faço, embora não me recorde bem dos anéis que me desapareceram. A pergunta de Wislawa é muito mais intrigante e, lá está, poética. Em que dedo andará? E abre caminhos extraordinários à imaginação.
Já a outra pergunta é diferente: quando cessarão as guerras e o que as substituirá. É esta segunda frase que faz a diferença. Quando cessarão as guerras é uma pergunta retórica, bem intencionada, paz e amor, etc. Mas ao querer saber o que as substituirá, aí está a pergunta sobre que mundo seria esse, que pessoas seriam essas, e se seriam pessoas, e por aí adiante.
Ser jornalista é como ser uma criança ou uma Wislawa: é observar o mundo e fazer perguntas. Os porquês, por um lado, e as hipóteses alternativas (não, não é a verdade alternativa, isso é outra conversa e não é para aqui chamada). Eu tornei-me jornalista por acaso, nunca pensei quero ser jornalista quando for grande, isso estava fora de qualquer efabulação da minha infância. Mas sei que consegui incomodar pessoas cheias de certezas e preconceitos com as minhas perguntas e dúvidas, e então na adolescência nem vos digo mais, porque as perguntas e dúvidas iam dando lugar a certezas que felizmente fui deixando pelo caminho.
No meio disto, se há coisa que me dê prazer é esse dom da admiração de que Wislawa fala, a capacidade de espanto e maravilhamento. Desse dom não prescindo, parada a olhar um céu estrelado, um quadro, um poema uma música, uma pedra como aquela coleção que herdei de um tio-avô, tão vasta que está agora numa escola onde as minhas filhas aprenderam e ainda cá tenho algumas dentro de uma caixa de sapatos. Não fiquei poeta, nem cientista nem professora, fiquei jornalista e gosto disso.